quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Gosto do meu quero


Imploro às verdades para que sejam absolutas. Para que sejam leves, brandas, contudo absolutas. Quero sempre o limite do desenho da sombra. Quero sempre ver as margens entre a luz e as trevas que brotam de mim. Quero saber o sabor e o saber dos alimentos. Quero ver sucumbir os mitos e as lendas. Quero ver a igreja ruir. Quero ver Homens e homens. Mulheres e mulheres. Quero conhecer a verdadeira face do plano do uno. Quero saber se somos um, qual é sua parte que me espera. Quero sentir pulsar dentro de mim as veias dessa sociedade. Quer ver o que sobra, o que resta. Quero ver o vazio enchendo de mundos e o cheio perdendo seus valores. Quero saber se a igualdade está nesse pacote. Quero saber se a gentileza veio só como brinde. Quero saber se todos tiveram acesso ao mesmo pacote e cada um que ficou responsável por distorcer o seu. Quero saber se o gosto desses brindes tem efeito alucinógeno. Quero tudo isso e mais um pouco. Quero ficar louco, se é que ainda não o fiz. Só não quero uma coisa, que as verdades que tenho que fingir sejam sempre a verdade do outro. Quero ver todo mundo perdendo o chão, buscando para os pés um novo conforto. Quero ver quantos encontrarão.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Bom, nesse sonho eu finalmente estava numa casa que em outros sonhos eu já havia tentado chegar algumas vezes. E lá já estava eu. Não me lembro do percurso, só lembro que cheguei. Era casa do Luís Carlos e do Charles. Em outros sonhos, quem estava nessa casa era o irmão de um deles. Agora, quando entro lá, deparo-me com minha mãe, umas pessoas poucas, todas conhecidas. E eis que por uma porta vem brincando inocentemente a figura de uma menina de seus mais ou menos quatro anos. Linda, era ela. Eu já de pronto me senti atraído. Era bela e educada. E eu, fascinado, tive no mesmo instante a certeza de que era minha filha. E junto à certeza, outra – ela não sabia que eu era seu pai. Mas ali, naquela casa? Nada disso mais importava. O contexto era tão bizarro para que houvesse uma filha minha ali, mas e daí? Era linda, a menina, cujo o nome já perdi nas deslembranças desse sonho. Minha mãe estava ali no sonho e parecia já saber de tudo. E eu titubeei, pensei: conto a ela ou não que sou seu pai? Contei. Ela me deu um abraço apertado e mostrou-se tão feliz, mas tão feliz... aquilo me comoveu muito. Muito mesmo. E então chorei. O clima era de felicidade geral. E então, perguntei para ela: mas quem é sua mãe? E ela só apontou uma mulher na mesa, do outro lado. Era Lucimar. Uma amiga minha da terceira ou quarta série. E o diálogo: Mas Lucimar, por que você não me disse nada? – Por que você gostava da Karla. Karla é uma amiga minha daquelas que a gente nem sabe de quando porque éramos muito criancinhas quando nos conhecemos. Nem lembro o dia que a conheci, só que quando me dei conta de que eu vivia e era alguém, eu já era amigo dela. No sonho chegava meu pai, chegava o Luís Carlos, velho, com o rosto de velho. O Charles como sempre alheio ao tempo que passava para todos, menos para ele. E a criança. Fiquei tão impressionado com o sonho, com a clareza com que vi o rosto da minha filha, que não tinha nome pelo jeito, porque não me importei em perguntar e ninguém falou durante o sonho.


Talvez seja o meu momento do retorno de saturno, e o meu corpo chamando para o ringue minhas obrigações parentais. Não tenho filhos... agora fico pensando se completo ou não a frase com o AINDA.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Vagando sem direção

A pressão é leve e sutil. As palavras vão dissolvendo dentro da minha consciência, e sinto como se peristalticamente minhas vontades fossem mudadas em prol do outro. Escapo por entre as brechas sobressaltadas entre o que eu quero e o que posso. Mas perdido assim, dentro de mim, o que posso querer além de saber o que posso? Um sonho lúcido, desses em que a lógica é um mero detalhe, desses que quando falta nem falta faz. Um clima de perseguição e de contradição. Não me sinto contradito dentro de mim, mas meus ouvidos distorcem cada sussurro. Ah, se eu fosse dono do tempo, faria parar e arrumaria minha casa. Arrumaria minha vida e talvez mais um emprego. Arrumaria dinheiro e pagaria as contas do mundo. Faria um banquete para quem tem fome, um piscinete para quem tem sede. No instante seguinte, todos contentos como num passe de mágica. Mas a mágica que me muda de um segundo para o outro nunca me trata com a mesma generosidade. É espessa a sensação do engolir sapos. É a pílula da libertação. É o suicida que não se mata com medo do pecado, mas que vive só esperando tudo acabar. E eu?, pergunto-me para mim mesmo. Onde foi parar meu juízo, minha lógica ou minha razão? Nas caixas do comprimido. Na ponta do lápis dos médicos. Eu vago, e vago e vago e vago... vou longe e distante, mas nunca volto, posto que nem mesmo sei de onde parti. Quem dirá para onde vou, de onde vim. Por que sou, então, a utopia do auto-saber, desse sonho abdiquei, vou tocando a vida, ou sendo tocado por ela. Vou oscilando, no ritmo das ondas dessa maré que nem me leva nem me deixa. É fim do ano. A virada está próxima. Tomara que essa coisa vire, que a moeda com cara me mostre a sua coroa. E que a coroa me traga sua majestade riqueza.

Lapsos em Descompassos

Medos e síndromes à parte, eu sempre sinto que falar através dos textos em blogs é como falar com paredes, que por sua vez, têm ouvidos. Dar vazão a essa expressão é muito bom e por isso recomendo. Senti-me um parteiro, digamos, incentivando uma amiga que vou usar um codinome para não identificá-la: Rosa. E o outro amigo, na conversa: Camilo. Não que seja necessário escondê-los atrás de codinomes, mas onde ficam as piadas internas?? 

Rosa sempre teve ideias sobre o mundo. Ideias que nunca germinavam e botavam seus brotinhos além dos limites dos pensamentos dela. Um tipo de egoísmo no escuro. Camilo, estudando o poder do blog nas nossas vidas, chega com uma dissertação impressa cujo título era: Rosa, faça um blog! E assim se fez um Lapso em Descompasso!

Não foi bem assim, mas viva as perspectivas, e abaixo às expectativas.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Day 2, step 2

De alguma forma, saber que o que estava sentindo era a tal da síndrome do pânnico, ou o transtorno do pânico fez com que eu mesclasse algumas sensações das crises que eu tive aos 15 anos. A doutora disse que essses sintomas que eu descrevi para ela na minha adolescência eram de agorofobia e não do transtorno em si, todos eles associados aos meus picos de ansiedade. Neste momento, manhã do dia 24 de novembro de 2011, por volta das 9h30 da manhã, o que eu sinto é muito simples, uma leve ansiedade deixada pelo fim das cinco gotas de rivotril que eu tomei ontem à noite, estou terminando um café da manhã com uma fatia de pão e requeijão, uma porção de aveia com leite e mais algo que não consigo me lembrar o que comi. Logo, jajá, eu vou tomar a segunda dose do exodus. Minha noite foi tranquila. Devo ter sonhado, mas não me lembro. Acordei um pouco antes das 8h. De repente acordei de novo e eram nove e pouco. Não me lembro muito bem do que aconteceu, se eu levantei e bebi água e deitei de novo. Não sei. Bom, quero falar sobre o primeiro dia. Depois de ter tomado os remédios certinho, eu tinha que ir fazer a ficha catalográfica da minha dissertação na biblioteca da faculdade e também tinha que fazer uma impressão da ultima versão da dissertação para isso. Antes, ainda, eu tinha uma consulta marcada com o otorrinolaringologista (doravante otorrino.. rsrs). Eu, louco, fui de moto, mas não tenho outra opção. Acreditei no rivotril sublingual no bolso e fui para a rua. Depois de um tempo de trânsito, comecei a me sentir um pouco mal, uma tontura, uma raiva e uma vontade de chorar. Cheguei meio transtornado no consultório. Então, pensei que pudesse ser a hora do primeiro rivotril contra o ataque de pânico. Mas e o medo de me sedar e ainda ter todo o transito para voltar? Mas e essa angústia e tontura que eu estava sentindo? Coloquei meio comprimido em baixo da língua e duvidei que fosse funcionar, duvidei que fosse derreter. Gente, eu tinha certeza de que tudo isso era balela e que não resolveria meus sintomas. Foi quando, nem me dei conta quando, mas a pastilha meio arenosa começou a esfarelar na língua. Acho mesmo que o remédio começou a fazer efeito na hora de ir embora. Nem consegui falar direito com o médico. Ele examinou minha boca, ouvidos e nariz, fez algumas perguntas, deu alguns sorrisos tranqüilizadores e mediu minha pressão. Eu poderia jurar que estava alta. Mas não estava. A ansiedade me enganava, então. Eu não poderia confiar nem nas minhas próprias sensações. Na saída, ele pediu exames para mim, de sangue e um que eu não consegui ler a letra, mas que será dentro da orelha, para saber sobre a sensação de estar com o ouvido entupido [tomara que não seja sujeira, já pensou que vergonha??] [simulação] - E então Dr. O que eu tenho? - Porquice. Aprenda a tomar banho direito. Vou te receitar essa caixa de cotonetes. Bom, depois, de volta ao transito, de volta ao pânico, de leve, mas ainda existente. Cheguei em casa e dormi um bom tanto. Depois, fui fazer a impressão da dissertação e levar na biblioteca da universidade para fazer a ficha catalográfica. Durante esses processo todo, tive mini crises de ansiedade mas nada que me tirasse da jogada. O problema é o sono que eu venho sentindo por conta da medicação. Estou tomando uma dose menor do que a recomendada de rivotril. Eu sinto minha ansiedade presa nos meus pés, como era antes de ela se espalhar por todo o meu descontrole. Falar do assunto me estressa um pouco, mas é um meio de eu organizar a realidade para mim mesmo através da escrita, uma vez que eu não posso ainda pagar por uma psicoterapia. A psicanálise não é ciência, então eu também queria aproveitar para usar outras não tão ciências, como terapias holísticas. Quero ser terapeuta holístico. Bom, previsão do dia de hoje é mandar as impressões da dissertação conforme manda a lista de indicações que recebi do programa de pós graduação. Vou terminar de comer minha aveia, e tomar meu exodus e esperar começar a fazer efeito. Qual a sensação de efeito? Que a realidade é destacável. Parece que eu não preciso da realidade, ela é indiferente. Mas na hora do almoço tudo passa...

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Day 1, Step 1

Mas que maneira mais chata de reativar o blog. Comecei a escrever por conta do processo de mestrado pelo qual passei nesses últimos dois anos e meio. Um período em que cresci muito mas também adoeci um pouco por conta da ansiedade. O objetivo sempre foi nunca deixar de postar. Mas tudo bem, eu vou continuar postando agora, mais frenquentemente, espero. Bom , a novidade é que agora estou com o diagnóstico de transtorno do pânico [de novo]. É certo que eu tive na primeira vez aos 14 ou 15 anos, e consegui tomar conta de mim sozinho. Desta vez, tive que cair nas garras da medicação de tarja preta. Será temporário, porque meu caso não está tão grave assim, mas mesmo assim é algo que me mexe com minhas neuras. DAY 1: 5 gotas de rivotril antes de dormir. Antes de tomar, senti aquela sensação de medo, de entrar num brinquedo de parque que vai fazer minha cabeça rodar. Não gosto de brinquedos de parque. Gosto do parque em si, do clima e das pessoas felizes, mas eu mesmo andar nos brinquedos não gosto. Talvez eu veja a vida meio assim também. Adoro estar vivo e viver essa vida maluca que hora nos põe para cima e hora para baixo. Mas essa brincadeira de rivotril me deu uma sensação mais plástica de paz. Uma paz forjada. Espero que isso me ajude mesmo a relaxar, porque eu não consigui sentir as coisas com a minha lógica. Minhas sensações ficaram meio que adormecidas. Uma paz artificial. Dormi a noite toda como uma pedra. Como foi complicado para mim a noite de domingo para terça. Aliás, todo o domingo foi meio tenso. 3 hospitais num dia para mim é mais do que o suficiente para me jogar na cara que eu não estava bem. Não agora, agora estou neutro, amortecido. Perdido entre o sono e a vigília. Acho que na verdade mais a vigília do que o sono, mas o meu pensamento não se agrega aos fatos da vida. No HU, o segundo hospital que eu fui, ajudou muito a intensificar meus sintomas. Depois de ter sido largado num corredor cheio de gente internada nas cadeiras pelo corredor de atendimento médico, por falta de leitos, fui algumas vezes tratado bem rispidamente pelas enfermeiras que estavam no plantão noturno. Eram umas 2h e pouco da manhã quando me dei conta que esperava num corredor escuro, cheio de gente gemendo de dor, por um médico cuja a fila não existia sem, no entanto, anular a minha ‘necessidade de espera’. 30 minutos depois dessa angustia, tentei pular a janela, tentei arrombar a porta de saída. Disse a uma delas: vocês deveriam ter umas aulas de psicologia. Deveriam ir pelo menos para a igreja para relembrar que as pessoas que vocês cuidam são seres humanos, apavorados, com medo por estarem doentes. “Eu não posso fazer nada”, ela dizia neutra. “Minha pressão ta subindo, vai me dar um negocio” Mede para mim só pra eu ver que é coisa da minha cabeça e me acalmar [eu sabia que poderia ser uma sensação apenas, mesmo tendo pico de pressão há um mês quando da defesa]. Exodus: o segundo remédio do tratamento, a primeira dose do segundo remédio. Eu me sinto eu mesmo, mas um pouco mais desapegado com as coisas do cotidiano. Antes de começar o tratamento ontem, senti medo, pensei em tantas coisas sobre a minha vida e sobre o que passar para um tratamento medicamentoso significava para mim nessa vida de poucos anos que vivi até agora.O segundo remédio acho que deve servir para me devolver o eixo. Só sinto um pouco de tisteza por precisar dele. A sensação da ansiedade, essa parece que recuou um pouco. Agora, minhas sensações de adrenalina voltaram para os pés. É lá que eu sinto primeiro a ansiedade. É como se eu estive descendo na montanha russa e a adrenalina vem subindo pelas pernas. Sinto nos pés de novo. Considero um bom sinal. Mas não me sinto eu mesmo. Talvez o lance seja eu tirar férias de mim mesmo. Por isso tenho que ficar afastado do trabalho. Para ver se eu consigo sobreviver longe de mim, não sendo eu mesmo. Mais pra frente o médico vai me permitir ser eu mesmo, eu espero. Mas quem sou eu, ou quem eu penso que sou? Tenho medo de que esse seja um novo eu. Enquanto descanso de mim mesmo, farei coisas que nunca faço: exames médicos de diversas naturezas. Ainda tenho que verificar alguns sintomas de gastrite, labirintite, diabetes, se meu intestino é normal ou se essa preguiça dele ainda poderá me prejudicar. Ai, vida. Que saudade quando tudo era simples e eu mesmo tinha força de enfrentar meus medos.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Cultura e Aceitação dos Gays

No universo do futebol, uma das recorrências que se vê nas redes sociais e também nas conversas de bar é a depreciação do time alheio pelo critério ‘gay’. Rir de alguém porque é gay ainda está na moda desse grupo que só tem vento na cabeça, como as bolas de futebol. Diante de tantas transformações sociais, fica um tanto complicado lutar por um espaço digno na sociedade ainda hoje em dia. O consciente coletivo ainda tem uma imagem estereotipada do gay. Muita gente se dá bem com os gays, dizem que os respeitam, que ATÉ tem um amigo homossexual. Mas na hora de brincar com a integridade de outras pessoas, pegam no ponto da orientação sexual. Isso é respeito? Isso é repensar?? Para mim, isso é apoiar a causa contrária, é dar suporte e tomar a voz desse pensamento medieval de que o gay é a escória social.


Bom, num país futebolístico que é o nosso, é possível de fato falar em reeducação das massas sem repensar todas as outras instâncias sociais?? O gay não está na cama só, não! Ele está na escola, no hospital, na prefeitura, na moda, na construção civil, NO FUTEBOL, na saúde, na política, no comércio, no esporte, na televisão, nas ruas, na casa das pessoas... só não no quadro do que deve ser respeitado.
Eu fico muito triste quando vejo pessoas instruídas bricando inocentemente. Inocente é criança! Essas pessoas, que deveriam, a princípio, ajudar as pessoas a entender melhor sobre a própria cidadania e ajudar a formar cidadãos decentes e respeitosos, estão aí, dando voz ao que é cultural simplesmente. Ser cultural não é licença para matar. Touradas são culturais e no entanto começam a ser proibidas na Espanha. Jogar lixo nos rios também é cultural, e é combatido por leis ambientais. Gente, cultura é tudo na vida de uma pessoa. Ela vive segundo suas perspectivas culturais, pensa, age e convive tão somente a partir de sua perspectiva cultural. Mas não, as discussões sobre o gay na sociedade ainda estão superficiais na mídia e nas escolas, e na sociedade como um todo. Vamos tirar o gay da cama e vamos colocá-lo na sociedade de verdade.


Se você não é gay, respeite quem é. Já pensou se os gays decidissem a zombar sempre dos héteros? Por que motivos não faltam. Ah, como sobram até! Tenho medo da sociedade. Mas tenho educação [limitadíssima] também. Vou fazer a minha parte e levantar a minha bandeira. Se brincar com a índole de alguém usando a orientação sexual da pessoa perto de mim, vou fazer meu papel de EDUCADOR e vou propor uma reflexão do que seja RESPEITAR, ou que seja contribuir com o respeito. Não precisa gostar ou participar, mas não precisa também continuar propagando pensamentos homofóbicos, que, aliás, É CRIME! Fique ligado!

terça-feira, 9 de agosto de 2011

SONHO [Eu, ele e Barichello]


 Para fazer o projeto de Sonhos Lúcidos dar certo, eu preciso fazer um registro dos meus sonhos, para que meu cérebro entenda que ele precisa se recordar dos sonhos. Já tive um relâmpago de sonho lúcido. De repente, olhei pras mãos e vi que era um sonho. Fiquei feliz, muito feliz, e saí voando. Aí, já perdi a lucidez. Por isso, vou fazer esses relatos aqui, no maior improviso. Esse blog é um ótimo mediador entre eu e minhas aprendizagens. Gosto disso.^^ Mas agora, vamos ao sonho.

O sonho dividiu-se em duas partes. Na primeira, eu estava num lugar que parecia a mistura de colégio com estação de trem. Prédios antigos, mas mal cuidados. Nessa escola, aconteceu algo comigo que agora eu não me lembro, mas tinha sido algo do tipo bullying. Eu estava saindo do prédio, já na calçada quando eu vi que eu ia com alguém e eu estava feliz de ter saído de lá, ou estava feliz por outro motivo, não me lembro. Depois, eu estava só, passando pelas linhas do trem, do lado da estação. Haviam várias garagens, meio americanas, mas para guardar trens. Umas garagens bem grandes, que estava sendo ocupada por itinerantes. Um deles, o que me chamou muito a atenção, era Rubinho Barrichello [ou seja lá como se escreve esse nome estrangeiro]. Passei por ele. Ele estava de roupa de piloto, sentado no chão na porta da garajona, que tinha sua porta içada. Então, ele parecia esperar algo acontecer, pois não fazia nada no chão, apenas esperava sentado. Então, eu decidi voltar e conversar com ele. Só que, quando eu voltei, tinha um morenão lindo com ele. E eu cheguei e os dois deram um selinho. Aí, o Barichello disse: Tá vendo!? Fomos flagrados! E o mulato: que nada, esse aí não vai fazer nada [bicha uó, o sonho era meu, era para eu mandar nele e não a senhora!] Ok, eu então falei para o Barichello: Eu vim te desejar boa corrida. Dizer que tudo corra bem e que seja tranqüila. Para quem você corre mesmo? Para os Estados Unidos? [a única coisa que ele me disse no sonho foi para responder a esta pergunta: É. E então, eu devolvi: olha, então boa corrida e que você não sofra nenhum acidente, nem seja demitido. Mas vamos combinar, né? Para eles? Por que, cara? Nunca tinha me perguntado isso. Mas de qualquer forma, bom trabalho.
Saí andando, seguido pela bi uó que beijou o piloto. Ela queria ser minha amiga. Aí, eu topei. Sempre topo. Aí, o cara oscilava entre ser legal e ser chato. E então, ele falou: vamos para um lugar só nós. E eu pensei: eu, heim?! Ele vai querer me bater porque eu falei com o namorado dele. Dito e feito [não sei se foi porque eu é que pensei isso na hora que desenbocou nisso, mas o cara parecia ser gente fina pra caramba. Eu seria amigo dele, se ele existisse.] Respondi para ele que não, que eu estava com uns amigos e que ele poderia juntar-se a nós, se quisesse. Ele topou. Nesse instante, estávamos num corredor de escola pública. Ele voou para cima de mim e me derrubou no chão. Na hora veio uma mocinha correndo e depois a mãe dela atrás. Aí, as duas param perto de nós e parecem continuar uma discussão. E nós paramos de lutar para ver o barraco delas [bem bee, né?, eu sei.]. Daí, eu lembro que a gente se reconciliou e reconciliou mãe e filha também e acabou o sonho.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Feitiço

Seus olhos mostravam o quão tensa a chegada até círculo se revelara durante o trajeto. Não que já tivesse se sentido só algum dia, mas em especial naquela momento, parecia que uma multidão de almas seguravam sua mão. Começou a perceber que a energia de seu corpo passava a emanar para cima, formando uma espiral que subia cada vez mais forte. Não, a espiral não era uma novidade para ela, mas seus olhos perdidos, atentos em um ponto distante no tempo, como quem não consegue conter num silencio um segredo mortal, afoita, aflita, desejosa, temerosa. Como não conseguia emanar sua energia na direção que desejasse? É claro que ela podia. E ela pode, ainda para os que nela acreditam. Dito e feito. O encantamento começou a geminar no peito. Seu corpo, acalentado pelo chão da mata, não resistia a um se quer estímulo terrestre. Tudo de si estava no ar, em pleno movimento. Seus olhos matéreos estavam abertos, porque não importava o que eles podiam ver. Era noite, muito escura por causa da Lua Nova...

Gozava do calor dos trópicos naquele breu e a mata fechou-se sobre ela como se fosse seu próprio manto negro. Sentiu a mão de sua Mãe afagar-lhe a mais sensível e profunda camada áurea. Nem ela mesma sabia que existia em si um espaço tão profundo. Sentiu sua Mãe repentinamente brotar de Lá. Seu Olho Místico viu-se fazer no ar um perfeito círculo de fogo, e dentro dele surgir uma estrela de cinco pontas. Aos poucos, o fogo fez com que a estrela girasse em um eixo central repetidas vezes e a uma velocidade crescente que seu todo desenhou no picadeiro de fogo uma bela esfera, que veio a tornar-se a fruta sagrada, a Maçã. Curiosamente, o fruto partiu-se no ar num preciso corte vertical, como se recebesse e executasse prontamente uma ordem divina. E no seu centro, eis que o círculo de fogo pousou sobre o centro, desenhando com as sementes o pentagrama.
Coma a Maçã, me dizia sem palavra alguma. Coma-me!, ela pedia, sedutora. Era a hora do conjuro. A esfera que voava dela mantinha o espaço claro o bastante para que ela pudesse enxergar minimalisticamente cada espectro do Universo. Mas ela precisava focar em seu desejo. A semente dentro dela era já uma enorme jaqueira, frondosa e generosa, cujos frutos nasciam até tão embaixo, no caule, que algumas jacas cresciam já escoradas no chão. Esse é poder da Grande Mãe, sentiu-a dentro de si ao se dar conta da quantidade de bichos que a árvore poderia alimentar. Era forte assim, para ela. E acolhida na sombra de sua copa, ela emanou desde bastante profundo.... 

Senhora das Horas de Escuridão, Deusa amazona da Lua Nova em sua carruagem de Dragões, Deusa mãe de toda a magia, Deusa das Escolhas, , a Rainha do Submundo, a Alta Voz do Matriarcado. Hécate é seu nome e eu a invoco das minhas profundezas. Desperte em a força e trace meu caminho na direção que eu desejo. Assumo cada passo, reconheço sua Lei Tríplice, mas é tão forte o meu desejo... Traga-a de volta para mim.

Um sopro de vida saiu pela espiral e voou em direção ao seu pedido. Agora, tinha que ter fé e esperar que o fôlego que dera ao sopro fosse o bastante para encontrá-la novamente. Mas os desejos de uma bruxa não tardam nunca, quanto menos falham. Estava feito, lançado. Era agora esperar o tempo de uma vela queimando até o fim. Ela adormeceu.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Barbeiros sociais que somos


Como todo e bom texto, este que vos escrevo, caros auteregos, também é recheado de responsividades em direções diferentes da do discurso incitador. Ok, vamos simplificar. Decidi escrever sobre o tema como uma maneira de responder a alguns fatos, como a cartilha de conscientização do MEC e o preconceito de forma geral e também a um post de minha amiga Evely, que tmbém retratou em su blog uma experiência no salão. Respondo também às disussões do novo programa da GNT: conversa de salão.Bom, o fato é que todos estamos impregnados de preconceito e o usamos com muito mais frequencia do que se imagina. Pois bem, vamos ao fato central da escrita: NO BARBEIRO.
Marquei hora num salão por recomendações de um amigo próximo. Era segunda, entendeu? Segunda-feira. E o salão estava aberto. Pois essa foi a justa motivação: eu, que não sou cabeleireiro, também costumo tirar minhas folgas nas segundas-feiras. Com isso, ganho em pular o mal estar do domingo à noite. Mas estratégias a parte, o fato é que era segunda de manhã, e eu estava lá, esperando a minha vez. Era um salão de dois irmãos, jovens, em idade produtiva, e ambos com cara de pais, já. Não sei qual exatamente, mas já tinham um traço que os tirava do grupo dos jovens adultos, colocando-os como jovens adultos pais. Mas, enfim. Estavam os dois, cada um com um cliente. Os clientes, um que saiu, cedendo-me a cadeira, e outro negro. Pronto. Éramos em todo representantes de suas minorias. Os cabeleireiros héteros pobres que trabalham de segunda, o negro pobre, o gay pobre. Ou seja, eram todos pobres. Discutindo ‘política’.
A conversa começara antes de eu começar a ser atendido. O assunto, uma provável ligação de um telefonista de marketing tentando empurrar algum produto. A fala do relator começou a apontar os insultos: - Quando eu ouvi aquela voz mais cantadinha assim, já pensei, e bixa, isso aí. Na hora eu desliguei o telefone. Tá louco?! Vai virar homem, rapaz, depois vai trabalhar!
Na hora, me lembrei de que um dia desses eu não me manifestei de maneira nenhuma numa situação em que a figura do gay era menosprezada em público. Como tinha voltado pra casa naquele dia me sentindo derrotado por não agir nem no meu micro-espaço, decidi, ao mesmo tempo em que meu corpo começou a tremer, que deveria reagir àquilo. Pensei: vou levantar e vou embora. Vou perguntar diretamente se existe algum problema com a classe G e afins. Vou avisar que eles podem ser processados por agir assim. Mas o fato é que eles não estavam xingando o telefonista, estavam falando mal dele pelas costas. No que difere? O telefonista não estava lá para se sentir menosprezado. Mas eu estava. O trabalhador lá não poderia se defender, mas eu poderia fazê-lo.
Foi quando o juízo colocou sua mão sobre minha cabeça e disse: seja pacífico. Seu objetivo é contribuir com a sociedade, não se comportar como um torcedor de futebol em dia que o time perde. Eu deveria ser ajuizado, acomedido com minhas palavras, e o mais difícil de tudo, ser socialmente correto. E então, vi que tinha que bolar uma boa estratégia, pois nem pegar a moto e sair de la num tiro eu poderia, porque isso acarretaria coisas para outras pessoas, que tinham me indicado o salão. Detalhes, mas enfim [2]. Não pretendia fugir da onça, mesmo. Estava disposto a cumprir com meu dever militante.
Meus passos queriam ser dados na direção do fim do corte, mas o cliente anterior a mim, ainda nem tinha se levantado da cadeira. Quando o assunto da cartilha do MEC entrou em pauta. Senti-me em uma reunião de Bolsonaros. Era pedra voando na direção de tudo quanto é gay anônimo. Primeiro xingaram a cartilha, depois a iniciativa do MEC e depois os pais, que não tinham vergonha na cara de deixar seus filhos serem o que tiverem que ser. Aí, depois de tudo isso, eu lancei meu olhar medidor social e, só então, identifiquei todas as minorias presentes: o pobre, o gay, o negro e os cabeleireiros héteros trabalhadores de segunda. Tomado da decisão de manifestar algo, disse: eu acho que a proposta do MEC é louvável porque a cartilha não instrui os alunos a serem gays, e sim os instrui a respeitar o próximo, a vê-lo como um ser natural e atuante na sociedade em que vive.
- Olha a bixa se defendendo, uma voz zombou dentro da minha cabeça. Durante a primeira frase, já deu pra perceber que eu estava me envolvendo de maneira a defender minha classe: gay, pobre. – Eu que não quero meu filho vendo dois homens se beijando na escola. Isso é obrigação dos pais orientar os filhos do que é certo e errado, disse um dos três. Preconceito sempre existe e sempre existiu, disse o negro. Em casa, todos me chamam de preto, de negão, e tal, e não me sinto injuriado com isso, até gosto. Claro, respondi a ele. Agora, quando você estiver andando pela rua, e alguém atravessar a rua só para não passar do seu lado por causa da sua cor, você se sente como? Querido? Eu me sinto neutro, eu só olho e dou risada, defendeu-se. E eu ainda repliquei: Pois é, sua escolha de ignorar isso é um bom negócio para você manter sua auto estima para seguir em frente, pois tem uma família que depende do seu suor para comer, beber, vestir. Agora, depois de tudo isso que você faz de esforço para criar seu filho bem, porque ele é um ser humano como os outros, seu filho vai estar andando numa rua e vão atravessar a rua para não passar perto dele, porque ele é negro, e, considerando que ele é criança, não tem a personalidade ainda formada, vai cair certeiramente na posição que ele vê a sociedade em relação a ele: vai se sentir, incapaz, indesejado, inferior, vai ter sua auto estima abalada, vai ter uma crise, que pode acabar ou não, porque os insultos, mudos, psicológicos ou físicos não vão parar tão cedo, e isso vai prejudicar o desempenho dele na escola, que é pública, porque somos pobres, e aí vai...
Silêncio. O negro: É. Aí, também não.
Silêncio. Um dos cabeleireiros héteros disse: mas eu acho que a cartilha não resolve. Amei ter estudado até aqui, pois pude dizer: sim, sou de acordo. Só a cartilha não resolve nada. Pegar a molecada e soltar na frente do filme do povo do mesmo sexo se beijando não resolve. É preciso que os profissionais da educação, no caso, os professores, saibam também fazer uma abordagem do panfleto em sala de aula. É um trabalho conjunto. Mas isso não vai resolver o preconceito, alguém disparou. Não agora, mas quando eles forem grandes e forem exercer o papel de ‘futuro da nação’, eles vão poder construir um futuro melhor para os netos de vocês [meus não, porque não terei filhos, pensei comigo].
Como quer que corte? – quando eu vi, já tinha sentado e o corte começava a ser feito. Eu, que não estava mais com muita vontade de continuar a conversa, porque eu sempre teria algo para questionar, para refletir, para contrapor o discurso deles, abalados pelas minhas palavras, pois eu era o único que questionava a opinião deles. Eu que tudo isso só disse: corte curto e como quiser. E a conversa continuou rolando. Em pausas e efervescências.  Próximo cenário, da escola para o trânsito.
Não é só gay que sofre pelo preconceito! Minha resposta a isso foi: eu também concordo, todos sofrem de alguma maneira. Por exemplo, um deles disse: mulher no trânsito sofre, porque não importa, se for mulher a culpa sempre cai nela, porque ela é mulher. É a cabeça do povo que funciona assim. Eu senti que precisava me aproximar deles nesse momento, que eu estava perdendo distância, e fui direto dizer que eu Tb era preconceituoso, e sou mesmo. Conhecendo que tenho o problema fica mais fácil de ‘tratar’. Disse: é assim no trânsito: o carro da frente fez uma barberagem, a gente olha para o banco do motorista e reconhece o caráter minoritário dele: é mulher!, é velho!, é bixa!, essa é nossa cultura no trânsito. Procuramos a minoria que as pessoas se enquadram na tentativa de feri-las, de machuca-las. Por isso ando de vidros fechados, porque nem sempre eu consigo me segurar, mas não quero que minha vítima me ouça, porque não quero causar estragos maiores do que uma barberagem de trânsito.
Não precisa ser no transito, um deles disse. Muitos sofrem preconceito até no ambiente de trabalho, e tem que agüentar tudo. Eu disse: ainda bem que vocês são os donos do lugar. Já pensou serem discriminados no mercado de trabalho por ser hétero? Você, enquanto cabeleireiro hétero, já sofreu algum preconceito? – Ah, sim, claro. Mas aí a gente ignora, né? Deixa passar, leva na esportiva.
Se eu estou andando na rua e tem uma casa com o portão aberto e um cachorro grande por perto, eu não sou obrigado a passar com medo, mudar a rota, me arriscar, adivinhar se o cachorro está preso ou se é manso. Eu tenho que ter paz para exercer meu direito de ir e vir, e não ficar criando estratégias para passar ileso pelos cães dos vizinhos, ou pelas palavras dos outros. Isso é uma questão de ter paz. Paz, sossego, para tocar a vida.
Bom, eu diria palavra por palavra toda a conversa que se sucedeu. Mas nada mais importa. Terminei meu corte de cabelo, pagay, fui pra casa. Quando fui me olhar no espelho, menos inflamado do debate, vi: era um corte militar. Muito bonito, ficou. Militar.

terça-feira, 17 de maio de 2011

A fuga

Ela olhava para frente enquanto caminhava e pensava em tudo que deixava para trás. Tinha medo de tudo. Tinha medo de seguir em frente, de voltar, de ficar parada esperando algo acontecer. Ela estava perdida dentro de si e confusa, confundida. O sol não castigava sua pele porque a noite já havia sido anunciada pelas manchas alaranjadas próximas ao horizonte. Olhando para sempre, adiante ela decidiu parar e sentar em um banco, de frente para o mar. O barulho das ondas sempre a acalmavam, mas agora ela nem mesmo se dava conta de que as ondas quebravam chamando seu nome. Ela estava indiferente a tudo.
Um vento mais fresco fez-lhe a pele toda arrepiada. Era o sereno da noite chegando com o convite para se proteger dele, procurar um lugar para abrigar-se. Poderia procurar por toda a noite, não se sentiria mais protegida só evitando o sereno. Ela queria ter certeza de que tudo estava bem, e de que estava completamente sozinha. Por isso não quis ficar em casa. Seus olhos pareciam arregalar-se de pavor quando ela se lembrava da última cena que pretendia ter vivido dentro daquela casa. Seu corpo franzia com muito mais intensidade do que quando reagiu ao vento frio. Seu pavor poderia comover qualquer assassino, se visse seus olhos brilhando agonizantes e apavorados. Ela, estática, nem vivia nem morria. Ela existia apenas. Sofria as lembranças que nem sabia se eram de fato reais.
O pulso aumentara quando soube que estava sozinha em casa. Ela percorreu os corredores desvairada, descontrolada. Pôs-se em silêncio sobre a fria superfície da porta de metal. Não sentiu nenhuma presença do outro lado. Estava só. Abriu a porta vagarosamente e tateou a parede em busca de um interruptor. Parecia que não conhecia o lugar em que estava, apesar de ser ainda sua mesma casa, onde havia nascido e sido criada. O dedo indicador encontrou o ponto que traria luz ao ambiente. Mas antes que pudesse apertá-lo, sentiu correr em sua mão um outro dedo, de um outro alguém, que ela não sabia que estava ali.
Quis gritar, quis correr. O dedo que lhe passeava sobre as costas das mãos tinha o poder de congelar o corpo e a alma de quem tocasse. Ela estava imóvel degustando seu pavor irreal. Ela sabia que tudo era fruto de sua cabeça, e quebrou o gelo com o impacto do som denunciador da violência com a qual a luz foi golpeadamente acesa. A sala vazia estava descoberta pela luz. Era seu quarto, e a porta tornara-se madeira. – Madeira morta, disse ela em voz alta para si mesma. E, como numa resposta, a porta rangeu.
Ainda que soubesse que estava só, que ninguém punha um sequer dedo sobre ela, não conseguiu ficar ali. Sem perceber o que fazia, cruzou uma parede, duas, três. Não se deu conta de nada além do súbito desejo de desaparecer dali. Deu um grito com toda a força que os pulmões poderiam dar. Gritou tão longa e desesperadamente que nem se deu conta que até mesmo as maiores sopranos do mundo não conseguiriam juntar fôlego para uma nota tão clara, alta e longa. Ao som de seu lírico desespero, ela foi perdendo contato com o chão.
Seus pés sentiam o chão se abrir. Seu pavor aumentava e o grito seguia alto e forte. Sua pele não respondia mais ao frio, ou ao calor. Tudo o que tinha na mente era a impressão daquele toque nas costas de sua mão. Olhou pela janela e saiu por ela. Não viu a janela fechada. O grito emudecera-se. Talvez tivesse perdido a voz, mas também não havia percebido nem isso.
Olhando o mar e tentando recobrar os fatos, não conseguiu entender o que estava acontecendo. Sentada no banco, ela se deu conta de que, ainda que mudamente, gritava. E então, calou-se os músculos da face e esperou o próximo pensamento. Sabia que tudo era irreal, que estava estranho. Mas nem desconfiava que parte disso era um sonho, ou a força do eterno que estendia a mão. Ela era o dedo que tocava sua própria mão. Era a voz que lhe faltava na própria garganta. Era o chão que se abria sob os seus pés, obrigando-lhe a voar janela afora. Ela era a janela trancada, que não segurava nada dentro e nada fora. Ela era tudo, menos ela mesma.
Perdida e confusa, ela correu com os pés descalços na areia e se jogou em direção ao mar. Caiu ainda na areia molhada e esperou as ondas buscarem seu corpo na outra metade do caminho. Ela não era ela. Ela era o mar. Jogou suas ondas sob o corpo na areia e o arrastou, engolindo suas evidências. Estava só dentro da água, no fundo do mar. Ela era o mar. E o corpo que lá estava não boiava e nem nadava. O corpo nada. E ela o mar.
Talvez fosse um sonho, talvez estivesse morta, ou mesmo louca. Ela não sabia... seu corpo na água salgada começava a mover-se lentamente ate transformar-se num nado em direção à superfície. Estava tão apavorada que nem se deu conta de que continuou subindo com os braços em hélices até depois da superfície. Ganhou o céu e voou para bem longe da praia. Foi-se em direção ao sol. Perdeu-se no azul. Ela era o todo. Era azul do céu e do mar. Esgueirou-se na beira da alma e pulou. Foi voando e caindo sem rumo até transformar-se num ponto pequeno na imensidão. E deu-se conta de que assistira toda a cena ainda sentada no banco. E assustou-se. Num suspiro, viu também que o banco não existia e só então se dera conta de que não estava no litoral. Caiu dentro de si, pensou, e encontrou-se de novo com o dedo no interruptor. A luz não acendia. Ela tentava e nada. Nada acontecia. Ela estava louca, presa dentro da própria cabeça. Era sua própria cativa, sua cárcere. Não foi dessa vez que ela fugiu.