sábado, 26 de fevereiro de 2011

PERDIDA

Ela olhava para frente enquanto caminhava e pensava em tudo que deixava para trás. Tinha medo de tudo. Tinha medo de seguir em frente, de voltar, de ficar parada esperando algo acontecer. Ela estava perdida dentro de si e confusa, confundida. O sol não castigava sua pele porque a noite já havia sido anunciada pelas manchas laranjas próximas ao horizonte. Olhando para sempre, adiante ela decidiu parar e sentar em um banco, de frente para o mar. O barulho das ondas sempre a acalmavam, mas agora ela nem mesmo se dava conta de que as ondas quebravam chamando seu nome. Ela estava indiferente a tudo.
Um vento mais fresco fez-lhe a pele toda ficar empipocada. Era o sereno da noite chegando com o convite para se proteger dele, procurar um lugar para abrigar-se. Poderia procurar por toda a noite, não se sentiria mais protegida só evitando o sereno. Ela queria ter certeza de que tudo estava bem, e de que estava completamente sozinha. Por isso não quis ficar em casa. Seus olhos pareciam arregalar-se de pavor quando ela se lembrava da última cena que pretendia ter vivido dentro daquela casa. Seu corpo franzia com muito mais intensidade do que quando reagiu ao vento frio. Seu pavor poderia comover qualquer assassino, se visse seus olhos brilhando agonizantes e apavorados. Ela, estática, nem vivia nem morria. Ela existia apenas. Sofria as lembranças que nem sabia se eram de fato reais.
O pulso aumentara quando soube que estava sozinha em casa. Ela percorreu os corredores desvairada, descontrolada. Pôs-se em silêncio sob a fria superfície da porta de metal. Não sentiu nenhuma presença do outro lado. Estava só. Abriu a porta vagarosamente e tateou a parede em busca de um interruptor. Parecia que não conhecia o lugar em que estava, apesar de ser ainda sua mesma casa, onde havia nascido e sido criada. O dedo indicador encontrou o ponto que traria luz ao ambiente. Mas antes que pudesse apertá-lo, sentiu correr em sua mão um outro dedo, de um outroalguém, eu ela não sabia que estava ali.
Quis gritar, quis correr. O dedo que lhe passeava sobre as costas das mãos tinha o poder de congelar o corpo e a alma de quem tocasse. Ela estava imóvel degustando seu pavor irreal. Ela sabia que tudo era fruto de sua cabeça, e quebrou o gelo com o impacto do som denunciador da violência com a qual a luz foi golpeadamente acesa. A sala vazia estava descoberta pela luz. Era seu quarto, e a porta tornara-se madeira. – Madeira morta, disse ela em voz alta para si mesma. E, como numa resposta, a porta rangeu.
Ainda que soubesse que estava só, que ninguém punha um sequer dedo sobre ela, não conseguiu ficar ali. Sem perceber o que fazia, cruzou uma parede, duas, três. Nem viu que deixava para trás importantes sinais de que algo não estava normal. Não se deu conta de nada além do súbito desejo de desaparecer dali. Deu um grito com toda a força que os pulmões poderiam dar. Gritou tão longa e desesperadamente que nem se deu conta que até mesmo as maiores sopranos do mundo não conseguiriam juntar fôlego para uma nota tão clara, alta e longa. AO som de seu grito lírico, ela perdeu contato com o chão.
Seus pés foram sentindo o chão se abrir. Seu pavor aumentava e o grito seguia alto e forte. Sua pele não respondia mais ao frio, ou ao calor. Tudo o que tinha na mente era a impressão daquele toque nas costas de sua mão. Olhou pela janela e saiu por ela. Nem percebeu que a janela estava fechada. O grito emudecera-se. Talvez tivesse perdido a voz, mas também não havia percebido nem isso.
Olhando o mar e tentando recobrar os fatos, não conseguiu entender o que estava acontecendo. Sentada no banco, ela se deu conta de que, ainda que mudamente, gritava. E então, calou-se os músculos da face e esperou o próximo pensamento. Sabia que tudo era irreal, que estava estranho. Mas nem desconfiava que estava morta, ou mesmo dormindo. Ela não era ela. Ela era o dedo que tocava sua própria mão. Era a voz que lhe faltava na própria garganta. Era o chão que se abria sob os seus pés, obrigando-lhe a voar janela afora. Ela era a janela trancada, que não segurava Nanda dentro e nada fora. Ela era tudo, menos ela mesma.
Perdida e confusa, ela corre com os pés descalços na areia e se joga em direção ao mar. Cai ainda na areia molhada e espera as ondas buscarem seu corpo na outra metade do caminho. Ela não era ela. Ela era o mar. Jogou suas ondas sob o corpo na areia e o arrastou, engolindo suas evidências. Estava só dentro da água, no fundo do mar. Ela era o mar. E o corpo que lá estava não boiava e nem nadava.
Talvez fosse um sonho, talvez estivesse morta, ou mesmo louca. Ela não sabia... seu corpo na água salgada começava a mover-se lentamente ate transformar-se num nado em direção à superfície. Estava tão apavorada que nem se deu conta de que continuou subindo com os braços em hélices até depois da superfície. Ganhou o céu e voou para bem longe da praia. Foi-se em direção ao sol. Perdeu-se no azul. Ela era o todo. Era azul do céu e do mar. Esgueirou-se na beira da alma e pulou. Foi voando e caindo sem rumo até transoformar-se num ponto pequeno na imensidão. E deu-se conta de que assistira toda a cena ainda sentada no banco. E assustou-se. Num suspiro, viu também que o banco não existia e só então se dera conta de que não estava no litoral. Caiu dentro de si, pensou, e encontrou-se de novo com o dedo no interruptor. A luz não acendia. Ela tentava e nada. Nada acontecia. Ela estava louca, presa dentro da própria cabeça. Era sua própria cativa, sua cárcere.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

NÃO PRETENDO MUDAR O MUNDO



Estamos tão rodeados de formatos e visões aos quais devemos necessariamente corresponder. Claro, há os que não precisam corresponder a formato algum [além de corresponder ao informatismo], mas isso só é possível porque eles já estão no topo do caminho que os que se correspondem com os formatos trilham. É dura a existência. É dura a realidade. É difícil ser um ser vivo. Ser pensante é um luxo, principalmente nos dias de hoje, em que pensar se tornou um adereço, um assessório. Já vi o pensamento até como encantador de serpentes... “pra mim, inteligência é afrodisíaco”. Não vou negar que pra mim não seja um item muito relevante na hora de eu me sentir atraído por alguém, mas colocar isso como critério de coito é burrice. A maioria dos belos não correspondem aos feios. Mas dividir entre belos e feios e tudo mais já é corresponder aos tradicionais formatos. Quem quer casar com alguém feio? Gosto pessoal? Nãããão. Domínio e controle da massa. Porque é o que somos, a massa.

Toda essa revolta que eu desfiro contra os olhos do meu invisível leitor se dissolve na mesma velocidade com a bala responde ao comando do gatilho. O efeito é quase nulo, se não bater numa parte trincada dessa proteção capitalista que insistimos tecer sobre nós. Agora chega. Depois de um tempo, pensando, refletindo, pensei que talvez eu pudesse ser um herói e mudar o mundo. Mas que nada. Essa não é minha sina. A minha é ser feliz. Tenho certeza disso. Portanto, eu não tem! Não tenho vocação para justiceiro. Agora, também não quero ser condizente com o sofrimento. O problema é que não é possível não ser condizente. Não adianta nada eu cuspir essas crises de existência e entrar no meu carro e ir para o shopping usufruir. Não entrar no carro e não ir ao shopping, em contrapartida, não vai mudar. Só pra mim, que pararia de ir. Ok, tenho que confessar que vou mais por conta da livraria, que é meu tesão naquele lugar. Gente bonita, bem vestida, livros caros e bebidas super faturadas. É ali que eu me sinto no eixo. Olha só o eixo em que eu me equilibro. No eixo da loucura. Como disse, não pretendo mudar o mundo, mas confesso que ainda não sei se desfruto dele como um capitalista raivoso e dou vazão aos meus desejos capitais, pecaminolizados pela igreja e pelo social. Mas eles existem, assim como existe Dolce & Gabanna, Fendi, VB, Louis Vitton.

As peles dos animais, que nem racionais são [o que foi e continua sendo pior pra eles], servem muito ao nosso cotidiano. Cada um salve sua pele contra o sol, e para isso, vamos acabar com a pele deles, que não têm nada a ver com isso. É na pele dos outros que ficamos olhando enquanto outros mil experimentos acontecem na nossa própria pele. E esse texto não tem m eixo temático, como mandaria o formato. Mas pelo menos aqui eu grito meu sussurro de liberdade. O saber nos modifica. Se liberta ou aprisiona , eu ainda não sei. Mas de qualquer forma estamos de mãos atadas. Agradeço à Gabriela Vidal e À Margarida Liss, que mais enfaticamente me mostraram as cordas nos meus punhos. Agradeço à análise do discurso por me colocar essas ideias que nunca se calaram dentro do meu pensamento. Agora, eu preciso descansar. Num colchão macio sabor exploração ou num tapete de peles, sabor morte violenta? Cada um escolhe onde quer colocar a cabeça. A minha, que está fora do lugar, só posso garantir: que está sobre o pescoço, ainda que pensando como queiram. Pra concluir, não pretendo mudar o mundo, mas se pudesse, me mudava dele.