segunda-feira, 23 de maio de 2011

Barbeiros sociais que somos


Como todo e bom texto, este que vos escrevo, caros auteregos, também é recheado de responsividades em direções diferentes da do discurso incitador. Ok, vamos simplificar. Decidi escrever sobre o tema como uma maneira de responder a alguns fatos, como a cartilha de conscientização do MEC e o preconceito de forma geral e também a um post de minha amiga Evely, que tmbém retratou em su blog uma experiência no salão. Respondo também às disussões do novo programa da GNT: conversa de salão.Bom, o fato é que todos estamos impregnados de preconceito e o usamos com muito mais frequencia do que se imagina. Pois bem, vamos ao fato central da escrita: NO BARBEIRO.
Marquei hora num salão por recomendações de um amigo próximo. Era segunda, entendeu? Segunda-feira. E o salão estava aberto. Pois essa foi a justa motivação: eu, que não sou cabeleireiro, também costumo tirar minhas folgas nas segundas-feiras. Com isso, ganho em pular o mal estar do domingo à noite. Mas estratégias a parte, o fato é que era segunda de manhã, e eu estava lá, esperando a minha vez. Era um salão de dois irmãos, jovens, em idade produtiva, e ambos com cara de pais, já. Não sei qual exatamente, mas já tinham um traço que os tirava do grupo dos jovens adultos, colocando-os como jovens adultos pais. Mas, enfim. Estavam os dois, cada um com um cliente. Os clientes, um que saiu, cedendo-me a cadeira, e outro negro. Pronto. Éramos em todo representantes de suas minorias. Os cabeleireiros héteros pobres que trabalham de segunda, o negro pobre, o gay pobre. Ou seja, eram todos pobres. Discutindo ‘política’.
A conversa começara antes de eu começar a ser atendido. O assunto, uma provável ligação de um telefonista de marketing tentando empurrar algum produto. A fala do relator começou a apontar os insultos: - Quando eu ouvi aquela voz mais cantadinha assim, já pensei, e bixa, isso aí. Na hora eu desliguei o telefone. Tá louco?! Vai virar homem, rapaz, depois vai trabalhar!
Na hora, me lembrei de que um dia desses eu não me manifestei de maneira nenhuma numa situação em que a figura do gay era menosprezada em público. Como tinha voltado pra casa naquele dia me sentindo derrotado por não agir nem no meu micro-espaço, decidi, ao mesmo tempo em que meu corpo começou a tremer, que deveria reagir àquilo. Pensei: vou levantar e vou embora. Vou perguntar diretamente se existe algum problema com a classe G e afins. Vou avisar que eles podem ser processados por agir assim. Mas o fato é que eles não estavam xingando o telefonista, estavam falando mal dele pelas costas. No que difere? O telefonista não estava lá para se sentir menosprezado. Mas eu estava. O trabalhador lá não poderia se defender, mas eu poderia fazê-lo.
Foi quando o juízo colocou sua mão sobre minha cabeça e disse: seja pacífico. Seu objetivo é contribuir com a sociedade, não se comportar como um torcedor de futebol em dia que o time perde. Eu deveria ser ajuizado, acomedido com minhas palavras, e o mais difícil de tudo, ser socialmente correto. E então, vi que tinha que bolar uma boa estratégia, pois nem pegar a moto e sair de la num tiro eu poderia, porque isso acarretaria coisas para outras pessoas, que tinham me indicado o salão. Detalhes, mas enfim [2]. Não pretendia fugir da onça, mesmo. Estava disposto a cumprir com meu dever militante.
Meus passos queriam ser dados na direção do fim do corte, mas o cliente anterior a mim, ainda nem tinha se levantado da cadeira. Quando o assunto da cartilha do MEC entrou em pauta. Senti-me em uma reunião de Bolsonaros. Era pedra voando na direção de tudo quanto é gay anônimo. Primeiro xingaram a cartilha, depois a iniciativa do MEC e depois os pais, que não tinham vergonha na cara de deixar seus filhos serem o que tiverem que ser. Aí, depois de tudo isso, eu lancei meu olhar medidor social e, só então, identifiquei todas as minorias presentes: o pobre, o gay, o negro e os cabeleireiros héteros trabalhadores de segunda. Tomado da decisão de manifestar algo, disse: eu acho que a proposta do MEC é louvável porque a cartilha não instrui os alunos a serem gays, e sim os instrui a respeitar o próximo, a vê-lo como um ser natural e atuante na sociedade em que vive.
- Olha a bixa se defendendo, uma voz zombou dentro da minha cabeça. Durante a primeira frase, já deu pra perceber que eu estava me envolvendo de maneira a defender minha classe: gay, pobre. – Eu que não quero meu filho vendo dois homens se beijando na escola. Isso é obrigação dos pais orientar os filhos do que é certo e errado, disse um dos três. Preconceito sempre existe e sempre existiu, disse o negro. Em casa, todos me chamam de preto, de negão, e tal, e não me sinto injuriado com isso, até gosto. Claro, respondi a ele. Agora, quando você estiver andando pela rua, e alguém atravessar a rua só para não passar do seu lado por causa da sua cor, você se sente como? Querido? Eu me sinto neutro, eu só olho e dou risada, defendeu-se. E eu ainda repliquei: Pois é, sua escolha de ignorar isso é um bom negócio para você manter sua auto estima para seguir em frente, pois tem uma família que depende do seu suor para comer, beber, vestir. Agora, depois de tudo isso que você faz de esforço para criar seu filho bem, porque ele é um ser humano como os outros, seu filho vai estar andando numa rua e vão atravessar a rua para não passar perto dele, porque ele é negro, e, considerando que ele é criança, não tem a personalidade ainda formada, vai cair certeiramente na posição que ele vê a sociedade em relação a ele: vai se sentir, incapaz, indesejado, inferior, vai ter sua auto estima abalada, vai ter uma crise, que pode acabar ou não, porque os insultos, mudos, psicológicos ou físicos não vão parar tão cedo, e isso vai prejudicar o desempenho dele na escola, que é pública, porque somos pobres, e aí vai...
Silêncio. O negro: É. Aí, também não.
Silêncio. Um dos cabeleireiros héteros disse: mas eu acho que a cartilha não resolve. Amei ter estudado até aqui, pois pude dizer: sim, sou de acordo. Só a cartilha não resolve nada. Pegar a molecada e soltar na frente do filme do povo do mesmo sexo se beijando não resolve. É preciso que os profissionais da educação, no caso, os professores, saibam também fazer uma abordagem do panfleto em sala de aula. É um trabalho conjunto. Mas isso não vai resolver o preconceito, alguém disparou. Não agora, mas quando eles forem grandes e forem exercer o papel de ‘futuro da nação’, eles vão poder construir um futuro melhor para os netos de vocês [meus não, porque não terei filhos, pensei comigo].
Como quer que corte? – quando eu vi, já tinha sentado e o corte começava a ser feito. Eu, que não estava mais com muita vontade de continuar a conversa, porque eu sempre teria algo para questionar, para refletir, para contrapor o discurso deles, abalados pelas minhas palavras, pois eu era o único que questionava a opinião deles. Eu que tudo isso só disse: corte curto e como quiser. E a conversa continuou rolando. Em pausas e efervescências.  Próximo cenário, da escola para o trânsito.
Não é só gay que sofre pelo preconceito! Minha resposta a isso foi: eu também concordo, todos sofrem de alguma maneira. Por exemplo, um deles disse: mulher no trânsito sofre, porque não importa, se for mulher a culpa sempre cai nela, porque ela é mulher. É a cabeça do povo que funciona assim. Eu senti que precisava me aproximar deles nesse momento, que eu estava perdendo distância, e fui direto dizer que eu Tb era preconceituoso, e sou mesmo. Conhecendo que tenho o problema fica mais fácil de ‘tratar’. Disse: é assim no trânsito: o carro da frente fez uma barberagem, a gente olha para o banco do motorista e reconhece o caráter minoritário dele: é mulher!, é velho!, é bixa!, essa é nossa cultura no trânsito. Procuramos a minoria que as pessoas se enquadram na tentativa de feri-las, de machuca-las. Por isso ando de vidros fechados, porque nem sempre eu consigo me segurar, mas não quero que minha vítima me ouça, porque não quero causar estragos maiores do que uma barberagem de trânsito.
Não precisa ser no transito, um deles disse. Muitos sofrem preconceito até no ambiente de trabalho, e tem que agüentar tudo. Eu disse: ainda bem que vocês são os donos do lugar. Já pensou serem discriminados no mercado de trabalho por ser hétero? Você, enquanto cabeleireiro hétero, já sofreu algum preconceito? – Ah, sim, claro. Mas aí a gente ignora, né? Deixa passar, leva na esportiva.
Se eu estou andando na rua e tem uma casa com o portão aberto e um cachorro grande por perto, eu não sou obrigado a passar com medo, mudar a rota, me arriscar, adivinhar se o cachorro está preso ou se é manso. Eu tenho que ter paz para exercer meu direito de ir e vir, e não ficar criando estratégias para passar ileso pelos cães dos vizinhos, ou pelas palavras dos outros. Isso é uma questão de ter paz. Paz, sossego, para tocar a vida.
Bom, eu diria palavra por palavra toda a conversa que se sucedeu. Mas nada mais importa. Terminei meu corte de cabelo, pagay, fui pra casa. Quando fui me olhar no espelho, menos inflamado do debate, vi: era um corte militar. Muito bonito, ficou. Militar.

terça-feira, 17 de maio de 2011

A fuga

Ela olhava para frente enquanto caminhava e pensava em tudo que deixava para trás. Tinha medo de tudo. Tinha medo de seguir em frente, de voltar, de ficar parada esperando algo acontecer. Ela estava perdida dentro de si e confusa, confundida. O sol não castigava sua pele porque a noite já havia sido anunciada pelas manchas alaranjadas próximas ao horizonte. Olhando para sempre, adiante ela decidiu parar e sentar em um banco, de frente para o mar. O barulho das ondas sempre a acalmavam, mas agora ela nem mesmo se dava conta de que as ondas quebravam chamando seu nome. Ela estava indiferente a tudo.
Um vento mais fresco fez-lhe a pele toda arrepiada. Era o sereno da noite chegando com o convite para se proteger dele, procurar um lugar para abrigar-se. Poderia procurar por toda a noite, não se sentiria mais protegida só evitando o sereno. Ela queria ter certeza de que tudo estava bem, e de que estava completamente sozinha. Por isso não quis ficar em casa. Seus olhos pareciam arregalar-se de pavor quando ela se lembrava da última cena que pretendia ter vivido dentro daquela casa. Seu corpo franzia com muito mais intensidade do que quando reagiu ao vento frio. Seu pavor poderia comover qualquer assassino, se visse seus olhos brilhando agonizantes e apavorados. Ela, estática, nem vivia nem morria. Ela existia apenas. Sofria as lembranças que nem sabia se eram de fato reais.
O pulso aumentara quando soube que estava sozinha em casa. Ela percorreu os corredores desvairada, descontrolada. Pôs-se em silêncio sobre a fria superfície da porta de metal. Não sentiu nenhuma presença do outro lado. Estava só. Abriu a porta vagarosamente e tateou a parede em busca de um interruptor. Parecia que não conhecia o lugar em que estava, apesar de ser ainda sua mesma casa, onde havia nascido e sido criada. O dedo indicador encontrou o ponto que traria luz ao ambiente. Mas antes que pudesse apertá-lo, sentiu correr em sua mão um outro dedo, de um outro alguém, que ela não sabia que estava ali.
Quis gritar, quis correr. O dedo que lhe passeava sobre as costas das mãos tinha o poder de congelar o corpo e a alma de quem tocasse. Ela estava imóvel degustando seu pavor irreal. Ela sabia que tudo era fruto de sua cabeça, e quebrou o gelo com o impacto do som denunciador da violência com a qual a luz foi golpeadamente acesa. A sala vazia estava descoberta pela luz. Era seu quarto, e a porta tornara-se madeira. – Madeira morta, disse ela em voz alta para si mesma. E, como numa resposta, a porta rangeu.
Ainda que soubesse que estava só, que ninguém punha um sequer dedo sobre ela, não conseguiu ficar ali. Sem perceber o que fazia, cruzou uma parede, duas, três. Não se deu conta de nada além do súbito desejo de desaparecer dali. Deu um grito com toda a força que os pulmões poderiam dar. Gritou tão longa e desesperadamente que nem se deu conta que até mesmo as maiores sopranos do mundo não conseguiriam juntar fôlego para uma nota tão clara, alta e longa. Ao som de seu lírico desespero, ela foi perdendo contato com o chão.
Seus pés sentiam o chão se abrir. Seu pavor aumentava e o grito seguia alto e forte. Sua pele não respondia mais ao frio, ou ao calor. Tudo o que tinha na mente era a impressão daquele toque nas costas de sua mão. Olhou pela janela e saiu por ela. Não viu a janela fechada. O grito emudecera-se. Talvez tivesse perdido a voz, mas também não havia percebido nem isso.
Olhando o mar e tentando recobrar os fatos, não conseguiu entender o que estava acontecendo. Sentada no banco, ela se deu conta de que, ainda que mudamente, gritava. E então, calou-se os músculos da face e esperou o próximo pensamento. Sabia que tudo era irreal, que estava estranho. Mas nem desconfiava que parte disso era um sonho, ou a força do eterno que estendia a mão. Ela era o dedo que tocava sua própria mão. Era a voz que lhe faltava na própria garganta. Era o chão que se abria sob os seus pés, obrigando-lhe a voar janela afora. Ela era a janela trancada, que não segurava nada dentro e nada fora. Ela era tudo, menos ela mesma.
Perdida e confusa, ela correu com os pés descalços na areia e se jogou em direção ao mar. Caiu ainda na areia molhada e esperou as ondas buscarem seu corpo na outra metade do caminho. Ela não era ela. Ela era o mar. Jogou suas ondas sob o corpo na areia e o arrastou, engolindo suas evidências. Estava só dentro da água, no fundo do mar. Ela era o mar. E o corpo que lá estava não boiava e nem nadava. O corpo nada. E ela o mar.
Talvez fosse um sonho, talvez estivesse morta, ou mesmo louca. Ela não sabia... seu corpo na água salgada começava a mover-se lentamente ate transformar-se num nado em direção à superfície. Estava tão apavorada que nem se deu conta de que continuou subindo com os braços em hélices até depois da superfície. Ganhou o céu e voou para bem longe da praia. Foi-se em direção ao sol. Perdeu-se no azul. Ela era o todo. Era azul do céu e do mar. Esgueirou-se na beira da alma e pulou. Foi voando e caindo sem rumo até transformar-se num ponto pequeno na imensidão. E deu-se conta de que assistira toda a cena ainda sentada no banco. E assustou-se. Num suspiro, viu também que o banco não existia e só então se dera conta de que não estava no litoral. Caiu dentro de si, pensou, e encontrou-se de novo com o dedo no interruptor. A luz não acendia. Ela tentava e nada. Nada acontecia. Ela estava louca, presa dentro da própria cabeça. Era sua própria cativa, sua cárcere. Não foi dessa vez que ela fugiu.