quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Marley e Ele


Marley e Ele

Para Evely Libanori


O homem, feliz, ou bêbado, ou drogado, ou doente mental. Mal vestido, falando bem mole. Mochila nas costas, calça jeans surrada e camiseta de propaganda de algo, já um tanto desbotada. Ele fala com um Cão. E está feliz. Muito. O diferente ainda é como ele fala com o Cão. Ele não se posiciona como dono do Cão, mas como Amigo. Ele dizia – num chora, heim, Amigo! Que que foi?! Num quero ninguém choran perdimim, heim? Pó tratá di ficá feliz!
O Cachorro, mais surrado que o homem, declaradamente de rua, não parecia querer ser pertencido. Apenas era Amigo do homem. Ele, de pelagem negra, suja de areia de uma minúscula faixa de menos de 5 metros de praia na Avenida Beira-Mar. Ele parecia contar algo ao seu Amigo de outra espécie, o humano. Parecia contar um algo bem interessante. Coisas que fazemos entre Amigos. E seu Amigo humano fazia vistas de que entendia tudo e também replicava à altura dos rosnados explicativos. A cena era linda de se olhar. O mar no fundo brilhava dando a sensação que só era aquilo mesmo, na vastidão do oceano, a se observar. Era, ali, a única coisa que importava, para os dois. Um ao outro.
Que que foi? Tá cum fome?  - O bípede, que só tinha sua condição humana a oferecer, assim o fez com gosto e afinco. Virou ele todo a boca do Cachorro Amigo. Assim, começou a abordar os transeuntes – Dá uma moeda, pu favô, seu sinhô, minha senhora, minina, moço.  Assim, tendo juntado um tanto, meteu a mão no bolso de sua calça e de lá tirou como um tesouro uns dinheiros que nos seus olhos brilhavam como um pote de ouro no fim do arco-íris. Seu sorriso me contava que ele tinha o que faltava do dinheiro. E assim, ele e seu Amigo Cão partiram.
Algum tempo depois, voltam os Amigos, uma mais faceiro que o outro. O bípede, de tão contente e feliz que estava até me contagiou, e teria contagiado mais pessoas se as poucas que estavam ao redor prestassem atenção além de si mesmas, na sala de jantar, preocupadas em nascer e morrer. O Cão, então, esboçava contentamento que se derramava por onde passava. As pessoas notavam os dois, mas olhavam diretamente só para o Cão. O bípede não lhes merecia a atenção, pensavam, acho. E ele lá, com a boca aberta num sorriso largo, com a linguona para fora babando feliz, com saltos altos e com o rabo que parecia abanar o Cachorro com muito mais força que tinha o próprio dono!
- Ó que a gente tem!!  - disse gabando-se com uma sacola plástica em uma das mãos. Era a compra com a vaquinha coletiva. Então, levantou a sacola e tirou de dentro um saco de comida. Mas só para o Amigo. Um saco de ração. Ele falava a quem tivesse ouvidos – Rai cumê, rapaizi. Rai lá e enche esse bucho magro”. O Amigo não necessariamente magro, nem parecia esfomeado. Parecia mais um homem independente sentado no quiosque da praia, com seu Amigo humano, dividindo calma e educadamente uma bela porção de cores, sabores, cheiros e tudo mais sortidos.
Tão irradiante estavam, só faltou a música. Então, sacou o o celular do bolso da calça e logo colocou um funk que gemia “desliza, desliza, desliza no quiabo!”. Ele não dançava. Apenas olhava contente seu Amigo comer tranquilamente a ração. O Cão era de rua, e era nobre. Comeu com calma, aproveitando mais a companhia do que o prato. Eles eram Amigos. E de súbito, o homem virou-se para mim e disse: agora é a MINHA vez. E depois sorriu novamente.  Sorriu um sorriso banguela, amarelo esculro e preto. Um sorriso barroco – entre o sublime e o grotesco. Um sorriso sincero, de alma. Pegou no quiosque uma cerveja que pagara com o restante do dinheiro da ração.
Ele estava feliz de ver bem seu Amigo e o fato de viver com as sobras não lhe parecia grave. Senti lendo nos olhos dele um “É o bastante para nós dois, pelo menos por hoje.” Ele, o Cão. Ele, o Humano. Eles. Amigos do peito.
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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A crise matinal do dia D


Depois de ter feito a leitura dos pontos principais que eu já tinha pronto, depois de reler um livro todo num dia [nunca consegui fazer isso], depois de ler coisas novas, depois de conversar e descontrair com os alberguistas aqui em Floripa, acordei, há mais ou menos 2 horas, com a adrenalina chegando na goela. A sensação foi crescendo e eu tive que me controlar e procurar o remédio sem acordar nenhum dos 7 alberguistas que dividiam o quarto comigo, e eu com eles. Mas o meu coração não estava nem um pouco divido. Ele estava tomado de uma vontade louca de nem mesmo sei o quê.

Corri tranquilamente em direção ao shorts. O remédio estaria ali, esperando por mim. Mas estava? Não. Serviu para aumentar minha tensão. Meu desespero que aos poucos eu sentia vazar pelos olhos. Movimentos frenéticos da minha mão se enfiaram na mochila atrás de outra cartela. Procurar a começada a essa altura do campeonato é balela. Tomei. Esperei. Diminuiu, mas não passou. Em 15 minutos tomo o café da manhã. Não sei mesmo o que fazer. Estou conturbado e não quero deixar as poucas horas de sono mal dormido atrapalharem meu desempenho na prova. Não estou necessariamente preparado para ela com a lista de livros X, mas tenho alguns conhecimentos que certamente vão me permitir ter as minhas 4 respostas.

O remédio tira a concentração e deixa a pessoa esquecida, disse a médica arregalando os olhos por detrás das lentes dos óculos, que já faziam o papel de arregalamento causando o mesmo efeito ainda que ela não quisesse. São os olhos gigantescos, pupilas dilatas, que eu vejo no espelho. Quando olho para o centro dos olhos, eu a vejo, fazendo ressalvas. Não sei ainda bem o que fazer. Tomei meio remédio, sublingual. E agora, exatamente agora, eu respirei aliviado. Acho que foi a escrita que ajudou a me tranquilizar. Acho que vou tomar café da manhã e tomar a outra parte do remédio. E depois vou deixar que ele faça efeito, comigo na cama, com a Mussalim e com a Bentes. Mais improvável. Mais improviso. Mais sufoco, mais alívio. Mais hora, menos hora, chega a minha vez.

domingo, 4 de novembro de 2012

Tempos de escola


“Minha irmã tinha me dado uma fita que tinha duas músicas gravadas do rádio. Não sabia dizer que língua era aquela. Aliás, eu nem sabia que existiam outras línguas. Só sabia que o ritmo era bom e eu conseguia cantá-la muito bem. A primeira era romântica. A letra era: na-na-na-na-NA-na, pa-pa-pa-papééél, iê-iê-iê, pa-pa-pa-papééél. A Segunda era para dançar. A letra era linda. Eu cantava: tópu táu-pi, ah, ninô noní.”

Tudo começa antes mesmo de entrar na escola. Esperei muito tempo pelo dia que minha mãe nem me avisou que chegaria. Apenas disse: Gui, vai tomar banho para ir para a escola. Eu não conseguia acreditar que finalmente minha vez de ir para a escola havia chegado. Nem tinha idéia do que pudesse acontecer naquele lugar. No caminho eu via outras crianças como eu que iam choramingando. Eu não entendia. Será que eu precisava saber de algo antes de entrar naquele colégio? Minha expectativa estava tão grande que nem me deixei abalar pelas lágrimas de tantas crianças que estavam ao meu redor.
Pronto. Estava na fila. As crianças mais calmas do choro e tão eufóricas quanto eu. Mas eu estava lá. Duro. Parecia uma tábua de tanta tensão para saber o que ia acontecer agora. Veio uma mulher de saia e cumprimentou-nos tão dócil que até me deu frio na barriga. Começou. Agora. Não tem mais volta. Ela pegou na mão do primeiro da fila e foi conduzindo a gente para um lugar atrás da escola onde não tinha aula “dos grandes”. Entramos numa sala cheia de mesas quadradas para quatro pessoas. Eu me sentei no meio da sala. Nem no fundo porque eu não enxergava, e nem na frente porque todos me enxergariam. Eu era tímido de mais. Ela se apresentou, pediu que nos apresentássemos e passou desenhos para a gente pintar o ano todo. Também deu-nos uma folhas de papel crepom para que fizéssemos bolinhas. Eu me perguntava “por que a gente tem que fazer esse negócio chato que dói os dedo e os deixa todos coloridos?”. A mulher que eu chamava de “tia” mas que  não tinha relação consangüínea nenhuma comigo acabou ouvindo sem querer (será que foi tão sem querer assim?) e me disse que era para colarmos em um desenho ou algo parecido. Não me lembro bem. Mas me lembro que já tinha feito isso e não tinha gostado. Achava pintar com o lápis mais interessante. E respondi: - mas fica tão feio o desenho com essas bolinhas. Na minha pasta eu quero que você deixe uma cópia em branco desse desenhos porque eu vou colar essa bolinhas e não vai dar para saber qual é o desenho depois.
De forma geral nunca tive do que reclamar daquele ano. Acho que ela também não. Claro, aquelas crianças que ficavam chorando que queriam ir embora, que queriam a mãe, que nem sei o quê, de alguma forma atrapalharam um pouco o andamento das coisas. E o mais estranho: eu parecia entender que eram crianças e que era assim mesmo. Sempre pensava isso mas nunca percebia que eu era uma delas. Até que um dia, sei lá porque, eu descobri isso: que eu era mais uma criança ali dentro. Não que eu me sentisse superior. Não sei como eu me sentia, eu era uma criança! Mas aquela revelação me assustara de uma maneira tão grande e intensa que eu chorei e solucei. Não conseguia parar. A “tia” me pegou as mãos e perguntou o que eu tinha porque ela nunca me vira chorando. Eu respondi entre lágrimas: - eu quero minha mãe. Nesta hora me senti observado e o pior: me senti “mais uma daquelas crianças”. Chorei mais.
O ano passou e pedi para minha mãe me mudar de colégio. Queria começar a ler e escrever em um colégio legal, bonito, de destaque, com status de bom. Fui da E. E. P. G. Prof. Sebastião Teixeira Pinto para a E. E. P. G. Bartira. Era longe de casa, eu deveria ir a pé mas nada me desestimulava. Minha mãe, que é divorciada, disse que deveríamos ir para a creche pela manhã e de lá iríamos para a escola. Quando chegássemos em casa ela já estaria lá. Minha vida mudou completamente. Todas as manhãs eu estava na creche fazendo tudo que eu menos queria: cursos de marcenaria e de horticultura. Eram ofícios que eu tinha certeza que não me caberiam. Eu queria algo que me fizesse pensar, desenvolver coordenação motora. Os mais velhos faziam artesanato e as meninas, tanto novas quanto velhas, faziam crochê. Quem definiu que crochê era somente para as mulheres e cuidar da horta era dos homens? Lá estava eu, no sol. Carpindo.
O que eu poderia querer da escola naquela época? Fugir da creche. Esquecer daquela horta e do pavilhão com aquelas serras que a gente nem podia mexer. E lá eu conversava, ria. Aprendia alguma coisa que eu sabia que eu ia usar mais que a inchada ou a lixa. Estava lá aprendendo a ler e escrever. E no recreio eu ia para o pátio correr igual um louco até o dia que eu caí e machuquei o joelho. Não tinha ninguém para ficar quieto comigo porque todos corriam para lá e para cá. Aquela que me fez companhia foi a Vivi, da Quarta série, acho. Ela e a irmã dela, que devia ser da minha idade, iam comigo e meus amigos para a escola. Ela me disse tantas coisas legais sobre a vida, coisas que ela aprendeu na sala de aula como o sujeito da oração, que o céu era azul mas que de noite era preto, que a nuvem não era de algodão, que se estudar consegue tirar nota, que o coração era casa de Jesus (acha? Falar isso para uma criança? Isso é um crime!). Desde então eu passei a correr menos e ouvir mais o que eles já tinham visto. Lembro-me que um menino disse que estava na Quinta série e estava aprendendo a história do Egito. Para mim, estudar a história do Brasil já seria uma aventura inenarrável, e que nem dava para estudar a história do Egito. Ele havia inventado. Eu não acreditei nele mas não via a hora de entrar na Quinta para poder confirmar e aprender sobre o Egito. Era lá meu lugar. Na escola. Onde tudo que eu queria saber estava como que colado nas paredes me esperando para  absorver aquilo tudo. Minha primeira série foi tranqüila. Tive uma boa turma e uma boa professora. A única coisa que eu não entendia era como as crianças recitavam a família das sílabas para se lembrar da pronúncia daquelas letras. Para ler SAPO diziam sáá, e balbuciavam pa, pe, pi, po e diziam de peito cheio: PO. Eu lia correntemente: SÁ-PO. Pronto. Mas nada me incomodava. Adorava ler e escrever. Li logo meu primeiro livro: Maneco caneco chapéu de funil.
Veio então a Segunda série. Eu já lia e escrevia e já tinha lido alguns livros fininhos desses que só tem duas ou três linhas por página e todo ilustrado. Quando ia à biblioteca não gostava de emprestar esse tipo de livro porque eu lia muito rápido e nem compensava levar para ler. Eu lia ali mesmo, em pé, na frente da estante. Levava livros mais grossos. Mas no mesmo estilo. E com isso minha cabeça fervilhava de histórias que brotavam do escuro dos olhos fechados. Queria fazer uns livros desses com minhas  idéias. Mas sabia que não podia. Até que um dia minha “tia” disse para a turma escrever uma redação. Ora, era a mesma coisa! Só que no caderno! E lá fui eu escrever minha primeira história. Não me lembro o que eu escrevi e nem me lembro da aceitação da professora. Mas sabia aquela era uma grande história. Provavelmente era sobre “Minhas férias...”. Um tempo depois eu lidei com a Matemática. Era gostosa mas eu percebia que não era para mim aquilo. Mas eu até que gostava. Gostava de por em prova as verdades absolutas da vida. Será que dois e dois são quatro mesmo? E eu sabia que eu podia provar, se quisesse. Eu sabia provar par qualquer um que eram mesmo quatro. E provava. Dizia para os outros: são quatro mesmo! Minha “tia” sempre achava graça quando eu ia encantado revelar para ela minhas descobertas. Ela participava com alegria. E algumas vezes eu percebia que ela ficava mais alegre que eu. Ora, eu sabia que ela sabia. Ela não precisava fingir que eu descobri algo para ela também. Mas ela comemorava. Eu conjugava verbo nas pessoas eu, ele, ela, nós, ele e elas. Sabia qualquer verbo, eu achava.
Meu triunfo neste ano foi uma redação que ela pediu para fazer e a minha deu o tamanho de uma folha de almaço enquanto a dos meus colegas (não ousava chamar aqueles monstros de amigos) dava quase uma página. Tinha feito uma releitura (claro que não sabia que se chamava releitura, e duvido ainda que soubesse que eu estava sendo inspirado pela obra original) de Romeu e Julieta, de Shakespeare. Os personagens eram os sapos Apolônio e a rã era a Karine. Só que no final da minha história eles fugiam e tinham um filho chamado Aporine. A “tia” tinha achado a história tão boa que passou na lousa para meus amigos copiarem no caderno. E eu fiquei todo orgulhoso. Eu sentava na frente, perto da porta porque eu precisava ver a lousa. Eu não enxergava direito.
Meu choque foi quando a “tia”, já cansada da minha letra, que ela insistia em chamar de garrancho, resolveu expor uma ira tão violenta que até hoje me sinto envergonhado pela minha letra. Ela vivia reclamando que eu tinha letra feia. Escrevia bem, era comportado mas tinha a letra feia. Neste dia ela pegou o giz e colocou não a ponta, mas o lado do giz e escreveu meu nome dizendo que era assim que minha letra era. Aquele traço grosso e quase ilegível resolveu morar na minha cabeça. Era vizinho de Jesus, que morava no coração. Mas, se Jesus morava no meu coração, porque ele deixou a professora falar assim comigo? Meu irmão me protegia mais que Jesus. Ele até bateu em um menino na rua que tinha me chamado de bichinha. Jesus não. Ficava lá, socado no meu coração. Não saia para nada. Então mandei Jesus embora. Ora, ficar ocupando o coração dos outros de graça?
Em mim só habitava a Garatuja agora. Eu sempre via quando ela saia da minha cabeça e colava no teto pouco antes de eu pegar no sono. Nunca via a hora que ela voltava. Mas sabia que ela sempre voltava.
Veio a terceira série. Meu irmão, um ano mais velho que eu, havia reprovado essa série. A esta altura eu já não era mais inocente. Era arrogante e prepotente ao ponto de me achar superior por saber que eu sabia tudo que havia aprendido na escola e que seria capaz de aprender qualquer outra coisa que me ensinassem. Até mesmo uma outra língua. Meu irmão tinha ficado retido na série e eu avançava. Estávamos agora no mesmo nível. Na mesma série. Na mesma sala. Isso foi péssimo para mim. Eu estava na 3ª A e ele na 3ª C. minha mãe pediu para a gente ficar na mesma sala e não quiseram colocá-lo na A. Lá fui eu para a C. Mas tudo bem. Eu superaria. Não sabia o que me aguardava.
Minha “tia” falou que ela não era minha tia. Era minha professora. Eu sabia disso. Mas tia era tão sei lá o que. Mas isso não importava mais. Não importava o que significava afinal chamar a professora de tia. Eu deveria apenas me lembrar que as tias tinham morrido e dado lugar para as professoras. Ela foi brava e leve ao mesmo tempo. Me fez conjugar o verbo em umas pessoas que se chamavam tu e vós. Quem eram tu vós que eu nunca tinha ouvido falar? Com muito custo aprendi a falar com tu e vós. Mas de que adiantava? Eu adorava, como qualquer outro, receber elogios pelo meu desempenho. E já estava habituado a isso. E aquela mulher que eu chamava de professora corrigia meu caderno olhando para mim! Olhava para cima, para os outros, para a porta, para a janela. Corrigia, dava tantos certos em tão pouco tempo que eu sabia que ela nem lia o que eu escrevia. E eu sabia que eu tinha erros. Mas como eu dizer que eu sabia que tinha coisa errada? Se eu sei que tem coisa errada, porque eu mesmo não corrijo? Porque eu não sabia onde estavam os erros. E ela não estava lá para me dizer onde eles estavam. 
A escola havia se tornado um lugar qualquer para mim. Eu já não sentia que compensava sair de baixo daquele sol para ir da creche até o colégio porque eu não via retorno. Era gostoso aprender mas não era gostoso ir para a escola. Pedi para minha mãe me mudar de escola. No meio do ano migrei do E. E. P. G. Bartira e fui para o E. E. P. G. Prof. Sebastião Teixeira Pinto. Não tinha vaga na mesma sala para mim e meu irmão. Fomos separados. Ufa. Mas agora eu estava sozinho de tudo. Não conhecia ninguém. E o pior. Eles estavam mais adiantados com a matéria e nunca aprendi direito fazer contas de dividir com dois algarismos na chave. Já não podia provar as verdades da vida.  Uma conta em especial me chamou a atenção e pedi auxílio a um colega de classe que não soube fazer a conta e foi pedir a uma amiga dele da Quarta série. Ela fizera a conta e me ensinara a fazer. Aprendi para a prova mas depois fiz questão de esquecer. Fiquei amigo daquela figura inteligente que fazia contas com quantos algarismos na chave houvessem. Ela não corria no intervalo e eu ficava com ela porque eu não estava enturmado com as crianças da minha sala. A gente falava sobre as coisas da vida. Pode parecer mentira, mas era realmente sobre as coisas da vida dos adultos. Ela falava comigo sobre política e economia. A gente acompanhava o movimento da UFIR . Hoje eu nem sei o eu é isto. Era revolucionária. Aventureira. E por causa dela eu me peguei aos estudos. Fabiana Rufino. Era tão inteligente que me assombrava. Eu queria ser como ela. Tão inteligente. E ela era mesmo. A inspetora de alunos sempre nos elogiava porque nunca corríamos. E eu não corria porque já que os professores não me elogiavam pelo menos ela me elogiava.
Quarta série e veio o festival de poemas e poesias da escola. Eu estudava, como sempre no período da tarde. A Fabiana passara para a manhã só me sobrou os livros. O meu irmão caiu na minha sala. Enfim juntos, como minha mãe queria. Não eu, não nós. Minha mãe. Eu participei dois trabalhos meus foram expostos no varal. Sentia que eu era meio que excluído da sala. Meu irmão no fundo com o povo que bagunçava e eu na frente, de óculos e em silêncio. Tive pela primeira vez mais de uma professora. Era novo aquilo, mas não empolgante. Eu só queria chegar na  Quinta série porque eu ia aprender sobre a história do Egito e a língua inglesa. Não via a hora. Neste ano eu vi o que era uma professora brava e agressiva. Também vi o que era uma turma insuportável de alunos mal educados. A escola já não era aquilo tudo. Eu ia quase que por rotina. Aprender mais algo hoje não me estimulava. Eu ia porque tinha que ir. Eu sofria com os alunos me chamando de bichinha. Eu nem sabia o que era isso direito. Me ofendiam porque eu simplesmente sabia a matéria, porque eu era educado, porque eu ia na lousa responder questões, por coisas desse tipo eu fui excluído.
 Até que chegou a Quinta série. A novidade pairava no ar e eu estava a mil por hora só esperando que meus novos professores fossem legais para eu poder deslanchar na matéria. Era o inglês, era o Egito/ Matemática eu já tinha decidido que não gostava mais. Só sobrara o português que eu sempre fui normal. Normal. O que era ser normal nesta idade em uma escola de periferia onde todos da minha idade estavam brincando de personagens de luta e mexendo com as meninas? Mas eu estava lá. Firme e forte. Veio a professora que salvou meu ano: Teacher  Isabel Battaus. Ela me ensinou o básico e eu havia me apaixonado pela maneira que ela conduzia a aula. Eu podia compreender agora algumas coisas que eu nunca entendera: inglês. Mas este ano não tinha sido só coisas boas. Entre as coisas neutras, que são a maioria, eu tive uma em especial que me chamava a atenção: a professora de História Maria José. Até o nome parece ser histórico. E diria o mesmo da sua didática. Ela lia o livro conosco, ou para a gente, e depois dizia para lermos tudo de novo e fazermos uma síntese. E usava a palavra síntese. Eu nem sabia o que isso queria dizer mas fazia algo que imaginava que fosse. Não me lembro porque não perguntei a ela o que era afinal uma síntese. Mas eu ia para escola não por causa da síntese, mas pelo prazer que eu tinha com o inglês. As outras matérias eu ia levando porque eu conseguia absorver o conteúdo mesmo se dormisse durante as aulas. Muitas das coisas que eu estudei – exceto em matemática – eu já tinha uma vaga noção do que era. O Egito, eu fiz pesquisa à parte porque criei uma expectativa tão grande que não consegui me conter somente ã “síntese” do livro.
Feliz com minha nova mania – a de estudar por si – eu virei um rato de biblioteca. Passei a ler os romances que ninguém lia, estudei em português o conteúdo das outras séries, estudei inglês. Estudava e ficava feliz por isso. Não tinha notícias da Fabiana. Só que ela tinha engravidado e tinha se casado. Esse ano foi médio. Fiz pedido de transferência de turno porque queria estudar de manhã, já que a fama era de estudos mais puxados. Só conseguiam alunos que tivessem ótimas notas porque a demanda era grande. Eu consegui. Arrogante, não é? Mas era a única coisa que eu tinha: minha facilidade para os estudos. Até que o não acabou.
Na Sexta série eu senti o peso das falhas do sistema de ensino. Porque eu estava vendo a mesma matéria de inglês do ano passado? E em história eu via o Brasil de todas as formas. Nada me marcou durante esta série. Eu já tinha doze anos e resolvi estudar outras coisas na vida. Entrei em tantos cursos que minha mãe ficara preocupada com a sobrecarga. Mas eu levava tudo numa ótima. Eu entrei em cursos de artes, como danças e teatro, fiz cursos para meu currículo como secretariado, datilografia, informática; e cursos que eu sabia que não me serviriam para nada – e até hoje não serviram – como marchetaria. Eu nem gostava de falar que eu fazia curso disso porque sempre tinha que explicar o que era. E é algo tão simples que o povo dizia: An, legal. Legal. Eu gostava um pouco. Não era uma loucura de prazer mas eu já estava lá mesmo. Também fiz esportes como handball, vôlei de quadra e de praia, ginástica olímpica e natação. Confesso que Handball durou pouco. Eu não me dou bem com esportes que você precisa depender dos outros. Essa era minha desculpa.
Aquele foi um ano muito gostoso. Pude suprir a falta de excitação pela escola fazendo um monte de coisas que me agradavam.
O ano seguinte foi mais complicado. Durante todo o tempo eu  era vítima de chacota entre os garotos da sala. Eu era nomeado de tantas maneiras que conotavam o homossexualismo que nem seria capaz de listá-los. Mas eu fingia não me importar. Estava naquela escola que considerava o ensino muito fraco e sabia que existiam outras que tivessem Meu objetivo era o Instituto de Ensino Índia Vanuíre.  Era o que eu queria.
Este ano foi difícil para mim porque passei por situações muito apertadas na minha família. Não financeiras. Emocionais. Minha mãe havia adoecido muito. Tive choques culturais com religiões que eu procurava e que eu era arrastado pelas correntezas dos outros. Enfim. Minha cabeça já não agüentava tanta pressão e um ensino que não correspondia com minhas expectativas. Eu me cobrava de mais. Era quase um perfeccionista. A diferença entre o perfeccionista e eu era que eu não me considerava um perfeccionista. Eu era normal. Eu achava que era. Não tinha amigos que iam até minha casa. Não era uma pessoa sozinha. Eu tinha meus colegas. Também, se fazendo tudo isso que eu fazia , não conseguisse encontrar um amigo, o problema estaria claramente exposto. Mas eu era legal. Eu falava sobre qualquer assunto. Os amigos de minha mãe gostavam de mim. Eu sempre ficava com ela para conversar. Sempre a ouvia e sempre aconselhava as pessoas. Mas tem uma hora que a gente surta. Não tem como. Eu comecei a desistir de tudo. Larguei quase tudo e larguei o principal: escola. Não ia mais. Simplesmente não ia. Eu sentia medo das pessoas. Os outros pareciam querer me bater. Não queria ser visto. Então eu fingia sair de casa (nesta época eu estava fazendo tantas coisas que não tinha como ficar numa creche. Eu saí e me cuidei sozinho) e depois voltava. Assistia Sessão da tarde todos os dias ao ponto de pegar reprise do filme Canção da América.
Até então eu não sabia como minha mãe soubera. Mas ela não entendia. Eu tinha medo de chorar. Não queria estar entre os outros. Sabia que estava para reprovar por faltas. Os professores já tinham até riscado meu nome da lista de chamada. Mas eu não sabia que estava neste ponto. Eu pensava que uma hora aí eu teria coragem para encarar tudo. Mas não tive. Minha mãe me levava até a porta da sala de aula para eu não voltar. E tive de enfrentar os outros. Os professores que me diziam que eu perdi muito conteúdo que não estaria apto para os exames. Aí foi que eu mesmo me surpreendi com minhas capacidades. Incrivelmente eu passei por todos os exames tão bem (com exceção de matemática) que as pessoas me olhavam com distinção. Todos me perguntavam se eu tinha ficado estudando durante o tempo que não ia para a aula. Não tinha. Este era eu. Mas não era este que eu queria ser mais. Não queria ser mais assim: um prodígio. Nem pensava que era mas era tanta gente em cima falando e falando que eu sentia uma carga tão grande nas costas que tinha que corresponder a essas expectativas que eram minha obrigação: agora eu tinha que ser o máximo porque a fama estava feita e todos gostavam de ver e de comentar. Eu até tinha tratamento diferenciado nas aulas e na direção da escola. Eu era chamado para escrever coisas para o jornal da escola, pecinhas para os outros encenarem, danças para apresentar em comemorações.
Foi essa vida que eu joguei para trás. Bem para o alto. Comecei em outra escola, o Índia Vanuíre , a minha gloriosa sétima série de libertação. Lá ninguém me conhecia. Eu poderia falhar. Corria durante o recreio. Brincava. Era só mais um na multidão. Era vítima de chacota ainda mas já não me importava mais. Eu entrei em um curso de Espanhol e retomei os de dança. Estuda mil coisas por conta própria que ia mal nas provas do colégio porque não sobrava tempo. Quase reprovei inclusive em matemática. Ela é o ícone da minha sétima. A professora de matemática. Tonini seu nome. Brava de dar medo. Brigava comigo. Eu sentava na frente mas não parava um minuto. E eu respondia. Eu respondendo para professor. Se alguém soubesse, seria a decepção para eles. Mas eu fazia porque o que para mim importava era meu estar. Seja ele bem ou mau era o meu estar que valia.
Veio a oitava série. Foi tudo normal. Fiquei feliz porque eu tinha desafios. Tirar nota já era uma luta para mim. Eu era mediano. Não era mais visto com um gênio. Mesmo em inglês eu ia normal a ruim. Consegui me tornar parte daquela massa homogênea que as pessoas chamam de alunos. E eu era feliz porque eu era um deles, afinal.
Primeiro ano. Já estava me cansando do ritmo levado no ano passado. Queria provar algo novo. Diferente. O curso do primeiro ano não foi mais do que os anos anteriores. Nada me marcou, anão ser, é claro, as relações que ocorreram durante esta época: amigos, amores, sexo, e coisas normais da idade. Eu matava aulas para assistir filmes na casa dos outros. Fazia comida e levava para a praça e passava a tarde lá conversando e brincando. Mas passava de ano. Não era, todavia, o melhor aluno. Nem me fazia falta este rótulo.
Decidi que para dar uma mudança geral eu queria fazer magistério. Assim como minha irmã. Fiz no segundo  melhor centro do estado de São  Paulo. Ok. Só tinha esse projeto no estado de São Paulo. Chamava-se CEFAM: Centro de Formação e Aperfeiçoamento ao Magistério Prof. Odinir Magnani.
No ano seguinte entrei nesta escola aprovado no vestibular (havia uma concorrência para cursar porque o custo era integral e os alunos recebiam uma bolsa no valor de um salário mínimo para custear os estudos). Era 1999 eu tinha 16 anos. Refazendo o primeiro ano porque decidi que era magistério meu caminho. E quem eu encontro lá? Sim, ela. Fabiana. Minha amiga que me ensinou fazer uma conta quando eu estava na terceira série. Tinha se separado do marido e tinha um filho de dois anos. Lindo. E muito inteligente. Assim como ela. Será que inteligência era hereditária?
Ela estava no segundo ano e eu no primeiro. Fiz grandes amizades que cultivo até hoje. Dizem que a época de universidade é a melhor fase da vida. Digo de peito cheio que a minha começou muito mais cedo quando eu nem sabia que prestaria vestibular para estudar na UEM. Minha vida realmente se transformou daí para frente. Continuei não sendo o melhor aluno mas não era o pior. Eu me dedicava, estudava, ria brincava e fazia tantas coisas. Nesta fase eu estudei japonês, sânscrito, inglês, espanhol, francês, italiano, teatro, danças, ginástica olímpica, teatro, modelo manequim, dei aulas de inglês, de espanhol, de danças, montei meu próprio grupo. Minha vida havia mudado tanto! Eu comecei a ser eu mesmo. Eu era feliz assim. Sério! Este curso me fez tão bem que nem me importei em ver os outros do Índia Vanuíre se formarem em 2000 e eu só iria me formar em 2002. Nada podia me abalar. A relação com os professores era indescritível. Nunca me desentendi com qualquer um deles. Eram próximos aos alunos, amigos. Amigos mesmo. Os professores da rede estadual chamavam o CEFAM de paraíso porque lá não era como os colégios. Era tudo perfeito para os alunos professores. Era chamado de família Cefam. E todos éramos cefanistas. Até hoje me emociono vendo álbum de formatura e fita das comemorações que fazíamos. Muita coisa aconteceu nesta época. Até tive um novo acesso de medo das pessoas que descobri por diagnóstico médico que se tratava de uma Síndrome do Pânico. Mas passou.
            De modo geral, posso descrever a escola como uma escola para a vida mesmo. É lá que construí minhas relações, que aprendei o que era sociedade e que os heróis têm falhas. Descobri também que queria ser um desses heróis e que lutaria para sanar qualquer falha. Mas até que este dia não chegue, eu vivo assim: construindo boas relações e mantendo meu lado de estudos o mais saudável possível. Talvez fosse melhor para mim que eu voltasse a ser como antes. Mas não consigo me imaginar largando tudo e vivendo livros. Hoje eu vivo a vida e os estudos são parte dela. E uma parte que eu amo muito. Amo muito estudar. Mas não permito que seja minha única coisa a fazer. E depois, refletindo sobre tudo isso, o que me ajudou a ver todas essas coisas foi a falha no sistema. Péssimos professores fazem os alunos procurarem caminhos distintos ao da escola. Eu tive a sorte de me guiar para um caminho legal. Lamento por amigos meus que vi saírem da escola e seguirem caminhos nada saudáveis. Lamento também não ter uma escola que saiba lidar com o seu público. Lamento a falta de preparo dos profissionais da área e o descaso com que o governo lida com isso. Realmente lamento. E por enquanto é o que eu posso fazer: lamentar. Um dia essa realidade poderá ser mudada e eu poderei fazer parte da mão-de-obra. Por isso estou aqui.

            “Quando entrei no CEFAM, eu era um aluno de fora do mundo e resolvi  me conectar. Decidi estudar Madonna e gravei sua discografia. Lá, em uma das música mais antigas identifiquei aquela: Tópu tau-pi. Dizia-se Papa don`t preach, I`m in trouble deep. Me ajudou a ver que eu tinha crescido e compreendia já algumas coisas sobre a vida.”

(29/09/2007)

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Pânico


Era como se tudo tivesse começado de novo. Os medos estavam ali, no lado de fora da noite, esperando para segurar na minha mão durante o passeio. Mas eu tinha que ser bravo, ser valente. Enfrentar e vencer. Fui andando com a cachorrinha por todo o percurso do cotidiano pensando no que tinha acontecido logo na saída. Passei pela esquina dos primeiros cheiros e nem me dera conta do tempo que ela levava para vasculhar com o nariz cada cheirinho daqueles cantos.
                
Os primeiros passos rumo fora do portão foram assistidos por um cidadão, que parou o carro na frente da entrada do estacionamento do condomínio, como se fosse esperar alguém, mas de dentro do carro, via-se somente ele. E ele parecia somente ver a mim e à cachorra. E ela, na paciência e no tempo que demanda uma boa checagem olfativa, longamente cheirou as plantinhas ali da saída. E ele continuou a me olhar. Então, nunca mais olhei de volta. Só no último instante, antes de finalmente terminar de virar a esquina é que olhei de novo e brevemente eu vi. Ele ainda estava lá. Só que agora, fora do carro, em pé. Virado para a esquina. Como se esperasse alguém enquanto olha para a esquina, ou como se esperasse alguém que viesse da esquina.
                
De qualquer forma, a insistência do olhar foi algo que acabou ficando na minha cabeça. No começo, eu não tinha entendido o que tinha acontecido. Mas, parando para pensar, comecei a entender que na verdade eu poderia ser a pessoa que ele estava procurando. E no que vi em seu olhar, suas intenções não eram as melhores. Pronto. Era isso, um pau mandado atrás de mim. Mas quem teria feito isso? Quem me odiaria a esse ponto? Muito bem, sei dos nomes dessa lista, mas nenhum deles o faria naquele instante. Aquilo era indecifrável, para mim. Meus olhos não conseguiam enxergar nada de amedrontado que eu estava.
                
A cachorrinha continuou seu passeio alheia à minha condição. Ela simplesmente cheirava, cheirava e cheirava. Andava rápido, devagar, fazia xixi e cocô, que eu fiz questão de recolher e descarta-lo no lixo, adequadamente.  Mas naquela noite, eu só pensava. O percurso do passeio é sempre o mesmo há tempos. O horário do passeio também. Então, eu tinha entendido que tinha me tornado uma presa fácil. Era mesmo muito fácil me pegar se quiser, porque eu sou extremamente previsível, graças ao um habito de ser metódico por fora para poder ser bagunçado por dentro.  Mas o que eu estava pensando? Não era momento de análise, mas de verificar se existia mesmo sinal de perigo. Era domingo à noite e o movimento na rua era parco. Continuei com a minha valentia o percurso até o fim. Até virar a última esquina, a do outro lado do quarteirão. E para minha surpresa, lá estava para eu refletir.
                
Eu estava no começo da esquina. Se eu contasse a distância do portão do estacionamento até a esquina, eu poderia mencionar a distância de dois contêineres de lixo, dois caminhões estacionados e também de um carro. O mesmo carro. Aquele que tinha parado na frente do portão quando eu saí, agora estava atrás do segundo caminhão. O espaço entre a esquina e o carro, entre mim e o cara, era a areia que corria na minha ampulheta. A cada passo que eu dava eu tinha que pensar em tudo o que estava acontecendo e mensurar tudo. Minha sorte era ter a cachorrinha, que nesse pedaço do trajeto, como se ela estivesse cansada, anda bem devagar. Em dias normais, eu venço esse trajetinho incentivando-a e chamando-a para que ela acelere. Mas naquele domingo foi diferente. Ela teve toda a liberdade do mundo para ver e cheirar cada tudo que ela quisesse.
                
Enquanto isso, eu via o homem me ver levar a cachorra para o passeio. Ele andava meio impaciente, de um lado para o outro. E eu na calçada. E ele na rua e na calçada, na rua e na calçada. Aquilo não fazia sentido para mim. Porque ele ficaria nervoso agora? Não deve ser um profissional, ou está com medo, com a adrenalina correndo na veia para prepara-lo para o ataque. Quando eu andei mais um pouco, e vi que entraria num corredor formado por uma parede de uma quadra de um lado e dois caminhões e dois contêineres do outro. Aquele corredor escuro e cheio de cheiros para a cachorra demorar-se a eternidade tornaram-se um beco, um lugar para agir, um lugar por onde eu não deveria passar, não se quisesse viver, ou seja lá o que fosse. Para completar a minha tensão, a porta do passageiro do carro abre levemente e fica entreaberta.

Porque a porta não abriu totalmente? Por que a pessoa não saiu? Minha mão suava muito frio e meu estômago estava gélido, como se eu tivesse sido perfurado pela ponta de um iceberg. Penei isso enquanto meus passos automaticamente me levaram para a rua, tentando fugir da emboscada. Mas o homem parecia ter ficado mais furioso ainda. Ele mostrava muita impaciência. Mas ele esperou que eu passasse até a metade do segundo caminhão para tomar a primeira atitude e eu ter a primeira reação. Ele entrou no carro e ligou. Deu a partida, saiu rápido de onde estava. Pensei que pudesse ter uma arma e não precisasse mais do que uns milésimos de segundo para acabar com a minha raça. Claro que era isso. Porque mais estaria tão nervoso?

Enquanto, não sabia se corria, não sabia se ficava. Não sabia se olhava para trás, não sabia se abraçava a cachorra. Não sabia nada. E quando o carro de fato ficou na minha mira minha pele perdeu a cor e eu vi sentado no banco do lado a morte... não. Era uma mulher de preto. Uma mulher que sorria inocentemente ao lado do homem que agora parecia satisfeito de ir embora. E eles nem ligaram para mim. Agradecido de não ter reagido em nenhum instante fisicamente, voltei atravessando a rua aos poucos , recuperando as forças nas pernas. Era só uma crise. Só. 

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Autodigestão da escrita


O momento da escrita é sagrado. Temos que ter uma coisa dentro de nós, que em geral jorra de tão abundante, mas que na vida prática não aprendemos a empregar muito bem essa coisa. Chama-se vontade. Sem ela você não dá um passo. Com ela, mas sem saber como usar seria o mesmo que andar para trás.

Eu tenho vontades de escrever. Vontade de escrever coisas diferentes. O meu problema é que eu acabo querendo escrever muitas coisas ao mesmo tempo, o que não é uma tarefa das mais possíveis. Então, no fim de um ou dois parágrafos, eu já me sinto cansado de escrever sem rumo e apago tudo. Pronto, minha escrita foi para o poço do esquecimento.

Ideias nascem e morrem. Mas algumas delas vivem para sempre. Bem diferente dos meus textos abortados, esses morreram antes mesmo de viver. Nem sentiram o gosto da vida que é ter um interlocutor. Olha como cheguei longe. Agora mesmo me passou pela cabeça que eu tenho outras coisas para fazer, ou que eu posso fazer outras coisas. A vontade passou. Mas vou insistir até o fim desse parágrafo. Até completar a próxima ideia.

Depois que a vontade some, a gente fica num tipo de limbo branco, olhando para o espaço na frente, pensando no tudo que foi escrito e desperdiçado. A cada linha que escrevo, aumento meu prazer, e aumento a minha dó. Mas não me inspiro a continuar. Depois que a vontade acaba, o assunto vai caindo, caindo. Até que você não tem ou não quer mais falar. E então, o texto desfalece de uma vez por todas. Assim como este aqui, que jaz na certeza do fim de seu último ponto final.

domingo, 26 de agosto de 2012

Os benefícios ao se manter um blog


O exercício de reflexão terapêutica que eu citei anteriormente funciona da seguinte maneira. A influência que o leitor tem sobre o texto é um ponto que pode ser refletido e trabalhado, discutido internamente. Por exemplo: a maneira que você constrói suas privações e permissões deste modo de falar ou daquele assunto faz uma imagem daquilo que você vê do leitor. E o que você vê do leitor funciona como crivo para você escrever o seu texto. Agora, pensando...: Por onde passa o crivo do leitor no seu texto? E por quê ele passa por aí?
Quero dedicar este post a uma discussão que eu queria fazerhá um tempo, que é o incentivo ao uso de um blog. E por quê isso? Porque o blog é uma maneira de você expressar as coisas do seu cotidiano. E quando nós escrevemos, nunca conseguimos mostrar toda a abrangência desejada do assunto. De qualquer forma, na ausência dessa possibilidade da abrangência, o escritor acaba tendo que fazer um recorte. E este é o fato: como fazer o seu recorte? Dele depende o sucesso do seu texto. Não o sucesso de recordes de visitas, mas no sucesso de uma produção textual coesa, coerente. Quando escrevemos, temos que reelaborar nossos conceitos e transformá-los num organismo externo, que responde à intensão do autor e também ao contexto em que o ele é produzido (pensando nos possíveis leitores, acabamos falando tal coisa assim ou assado. Esse é o interlocutor, que está presente mesmo sem existir precisamente.)
Então, posso dizer que a escrita é uma lupa para a realidade. Um blog então faz a pessoa pensar e repensar alguns pontos e fatos sobre a vida. O papel em branco é sempre muito franco com a gente. Aquele assunto, tabu para o leitor, sempre acovardado no escuro,  chega a brincar na fantasia da programação do assunto do post, mas na ponta dos dedos mesmo, só deslizam assuntos que queremos elaborar em público. Por exemplo: sempre se fala na exposição das pessoas em redes sociais. Ok, os blogs sempre foram redes sociais, no meu conceito. Só que com ferramentas mais limitadas: texto e foto, uns de texto apenas, outros só de fotos. Que seja o tipo: todo o blog é um filtro da realidade.
Uma coisa que eu poderia até sugerir é o seguinte: quando temos um problema sobre o qual queremos resolver e ainda não sabemos como, ou, se precisamos discutir um assunto e não temos com quem, podemos escrever textos de valor terapêutico. Basta praticar. Com a prática, vem o domínio da escrita, e com o domínio da escrita vêm os benefícios almejados. A escrita terapêutica.. rsrsrsrs
De qualquer forma, tem que ser feito num blog. Não adianta fazer num ‘Diário de Helena’ da novela Por Amor, da Rede Globo (confirma, produção?!), nem em um arquivo que vai ficar salvo na pastinha linda do seu computador. Tem que publicar, sim. E por quê? É necessário que compreendamos os mecanismos da escrita e uma das partes do mecanismo é entender o papel do leitor na produção do texto. Essa influência que o seu leitor imaginário tem sobre o texto é a chave de tudo. Ele representa o olhar do outro, a primeiro momento.
Vamos nos delimitando pela escrita, conhecendo e reconhecendo nossas barreiras e cercas sociais invisíveis através da produção textual. Quando escrevemos, também deixamos nosso registro na história, cravado no tempo e imortalizado pela escrita. A escrita também é uma pegada humana. Refletir sobre essa pegada é essencial: olhar para trás e conhecer o formato do seu pé pela pegada, e o formato do pensamento pelo processo de produção do texto. 
Acredito que esse exercício extratifica algumas impressões da vida que são necessariamente carentes de repensagem. O hábito da escrita é uma das coisas que podem trazer muitos benefícios à saúde mental, ao modo como enxergamos as coisas da vida e como nos enxergamos perante elas.  Mas para escrever, recomendo também ler pelo menos dois posicionamentos diferentes do seu sobre o assunto... mas isso é assunto para outro post.. hehe.. que fique o eco da mensagem de Chacrinha: “Quem não se comunica, se trumbica”
Psicologismos e linguistiquismos a parte, eu acredito que isso funciona. ;)

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Brumas da manhã de inverno em Maringá


O sol não se arriscou muito no céu pelo dia. Logo pela manhã, no silêncio humano do fim da madrugada, os insetos noturnos já retornavam de sua longa jornada noturna. Era preciso ir embora antes do aviso dos pássaros. O ar naquela manhã estava bem úmido. Fazia um pouco de frio também. Tudo prometia um inverno bem úmido. Os insetos noturnos se recolheram à medida em que foram substituídos pelos insetos diurnos naquele cenário. E a manhã apenas começando.
Um sopro de tempo se deu naquele instante, e o Sol, ainda oculto pela massa de nuvens no céu, não se manifestou com nem mesmo uma faísca amarela. Estranhamente naquela manhã algo de diferente no clima chegou. Uma neblina invadiu a cidade dos bichos e dos homens e começou a ocultar cada pessoa, cada ser. A neblina seguiu tornando-se densa. Uma densidade alienante. Não se via nada. Não se ouvia também um piu. Parecia que tudo e todos estavam assistindo atentos àquela cena de suspense individual e coletivo.
As brumas tinham mesmo esse poder nas histórias antigas, contadas entre os bichos ainda hoje em dia. Já os homens apenas recontam histórias inventadas no cinema. E as brumas lá, pegando a todos de surpresa.  Um filhotinho de pássaro no seu ninho olhava atônito para sua mamãe pássaro. Pela janela de uma das casas, um par de olhinhos esgueiravam-se rumo ao nada, bem pertinho dele, ao silêncio envolvente das brumas. Os grilos, de pernas caladas, e as pétalas de rosa estavam encharcados de um doce orvalho que cobria de bolhas toda e qualquer superfície que as brumas tocassem.
Aquele momento fora como um chamado individual. Aqueles que apenas temeram e esperaram respeitosamente a situação mudar viveram em paz. Os outros, que aderiram à densa energia vital que corria naquela bruma, esses sim viram que existe alguma coisa além, um quê distante da humanice, um algo a ser descoberto no meio da fumaça. E em troca, a bruma também se alimentou naquele instante dessa conexão com os seres da terra. Essa troca de energias intensificou ainda mais as brumas, causando mais temor e respeito nos que não estabeleciam nada.
De tão intensa que a troca ficou, a bruma se liquefez e virou uma garoa fina fininha. E essa garoa era tão leve que ao sobro da mais suave brisa elas desenhavam no espaço formas caleidoscópicas de padrões inimagináveis. Repararam algumas ratazanas que acompanhavam os primeiros humanos ao trabalho que não era a brisa que movia os padrões de gotículas, mas a energia que elas trocavam quando se entregavam à bruma. Isso mexeu novamente com todos. Desde os que ficaram mais fasncinados pelo evento, os que passaram a respeitar mais ainda, e os que nem perceberam o que acontecia mas tiveram pelo menos que se projeger daquilo que já tinha se tornado uma chuva fina. E a bruma se desfazia à medida em que a chuvinha ia ganhando mais corpo e forma.
Era manhã, o aviso dos pássaros começara a ser dado. Muita alegria, muita cantoria. As pernas dos grilos até se raspavam sem querer de vez em quando ao dançarem sem perceber. Um adulto acordava com esse som enquanto outro se cobria para tentar abafá-lo. A diversidade na vida e no coração estava ali também, exposto, graças à bruma, que agora era uma chuva forte com ventos que ameaçavam os ninhos das aves que se protegiam de seus predadores.
Estava inaugurada a manhã. A partir daquele instante tudo estaria diferente para sempre. Uma bruma dessas não se passa assim por aqui sempre. Era preciso comemorar. A chuva foi passando devagar também. Até que parou de vez e uma família de brisas levou parte das nuvens para longe. O sol, agora, jogava seus primeiros raios do dia em cima das folhas molhadas de suor das árvores. O ar ficara leve e uma onda de bom humor invadia a cidade. E aos poucos, o azul do céu foi se mostrando dentre as nuvens que não passavam de massas rarefeitas de um cinza claro. Um azul esfumaçado brilhou intensamente sob os raios do vigor do sol.
O aviso dos pássaros dado, e tudo no seu devido lugar. A vida estava inaugurada de novo, naquela manhã de inverno.

domingo, 17 de junho de 2012

A promessa da leitura dinâmica


Como as coisas são, não é mesmo?! Tudo começou com uma pequena reforma que me exigiu readministrar todo o espaço dentro do guarda-roupas. Foi assim que encontrei o famigerado curso de leitura dinâmica. Numa maleta, bonita, alguns cartões, tabelas, um pouco disso e daquilo, umas apostilas e pronto. Várias fitas cassetes propostas como um professor, que vai falando de lá e eu ouvindo daqui. Ainda instrui o estudante a, caso não entenda, que volte a fita quantas vezes necessário.. ok, pedagogismos a parte, acho que estou maduro para superar as duras barreiras do método e adaptá-lo da melhor maneira possível. É a vantagem de estudar linguística.
Mas enfim, a leitura dinâmica é uma grande promessa. Iniciei com 240 palavras por minuto. Ainda não dei continuidade, fiz apenas a primeira parte de todas e comecei a fazer alguns exercícios. Estou fazendo tudo direitinho e embalado pela possibilidade de ler tantos livros de literatura, de bruxaria, de seja o que for. Ela vai revolucionar minha relação com a leitura fruição. Sempre vivi perto de muitos livros, mas nunca alimentei a ideia de ler todos na minha vida. Mas isso mudou! Em casa, eu tenho muitos livros ao meu redor que gostaria de ler. O fato é que a vida nos permite ler às vezes nem a metade dos que a gente considera o mais prazeroso. Pois então, esses dias estão por acabar. Minha promessa de consumismo de livro pode revolucionar minha vida.