sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Máscara no chão, eu segui meu caminho sem olhar para trás

Eu estava lá, esperando minha carona no fim da noite do meu trabalho. Para facilitar, eu espero na esquina, o que evita de fazer o percurso de carro por mais 4 quarteirões, dada a disposição das mãos das ruas e o trajeto até meu destino. Estava lá eu cansado e com o dinheiro na carteira para pagar meu terapeuta. Eu, a noite, os arbustos, todos silenciosos naquela esquina sem movimento algum. Mas não temia, porque não era a primeira que eu ficara ali e nunca nada de diferente acontecera nas vezes anteriores. Então, depois de um dia de folga de crises de ansiedade, eu esperava com a sensação de bem-estar e de autocontrole. Tudo estava indo bem.
 
Foi então que vi se aproximando uma figura. Um rapaz aparentemente mais novo do que eu. De calças jeans, camiseta e boné. Sua pele, entre o moreno e o mulato. Tinha o olhar cansado e um pouco perdido, e também vasos que pulsavam em seus glóbulos, fazendo de sua aparição uma ponta de início dos meus medos. Tive medo de ser assaltado. Nem me questionei se fosse pela cor de sua pele, pelo jeito que ele dispunha seus pés em seus passos perdidos, lentos como que com cuidado, ou perdidos, como que sem rumo. Olhava para os lados. Não sabia dizer o motivo, mas em minha cabeça ele procurava por testemunhas que preferia evitar e cometer seu delito de modo mais tranquilo.
 
Aproximou-se de mim e pediu um dinheiro. Tinha o ar triste e queria comer alguma coisa e beber um algo também. Pediu-me gentilmente, com um palavreado de gírias que passaram desconhecidas por minha limitada experiência social. Tinha medo de não dar um dinheiro e despertar nele sua ira, que o impulsionaria ao roubo. Tinha medo de dar o dinheiro e ser roubado quando pusesse a carteira à vista. Tinha pena de vê-lo tão desorientado. Abri a carteira e dei-lhe uma moeda, assim poupava de mostrar dentro dela algumas notas, já destinadas ao terapeuta.
 
Como que por gratidão, o rapaz desembestou a contar sua história para mim. Vinha do Paraná, coincidentemente de uma cidade perto de Maringá, de onde eu vinha também. Então, ficou estabelecido o primeiro traço de identificação. Cantei prontamente essa pedra, achando que pudesse ser um bom argumento para ele não me roubar. Mas no fundo mesmo, não parecia ameaçador, não fosse todo o contexto em que tudo se deu. Disse que viera há duas semanas com a namorada e que a dita o pusera para fora, restando-lhe apenas vagar pelas ruas dia e noite. Procurou a polícia, o conselho tutelar, isso e aquilo, para tentar conseguir o dinheiro da passagem de volta para sua terra natal. Tentativas todas frustradas. Restava-lhe mesmo vagar aqui e acolá. Chegou mesmo a me perguntar, depois de descrevê-la, se eu tinha visto sua ex andando pelas redondezas.
 
Foi quando ouvi atrás de mim uns outros passos. Minha mente advertiu: emboscada! Estava perdido naquele momento. Mergulhado no medo, não sabia como reagir. O segundo elemento era um quase negro, vestindo xortes e camiseta. Tinha consigo um pano, tão surrado quanto suas roupas. Esse claramente estava na rua há mais tempo que o primeiro. E estava ali, logo atrás de mim, aproximando-se. Não podia conter meu medo. Logo, desvirei e comecei a olhar para ambos, ora um, ora outro, até que o segundo chegou e nos cumprimentou. Pensei: se conhecem. É uma emboscada, certamente. E o segundo começou a conversar conosco como se quem não quisesse nada. Cumprimentou, perguntou como vamos, apertou nossas mãos e se pôs a conversar. E no meio da conversa, que eu não conseguia acompanhar muito bem dado o pânico que estava sentindo, ele contou sua história também. Aparentemente desinteressado, o primeiro disse que iria se sentar, que estava cansado. Como eu me reposicionara para não perder nem um nem outro de vista, acabei ficando de costas para a rua, e o primeiro foi bem na direção que eu não poderia avistá-lo. Disfarçando meu medo, virei-me e fiquei novamente com o olho pregado nos dois. Éramos ali nós três: dois que moravam na rua, um há mais tempo que o outro, e eu, que tinha ondes morar e comida quentinha em casa, me esperando.
 
O segundo perguntou meu nome, e eu respondi. Ele também dissera o seu: Charles. Contou-me que vinha de uma cidade do paraná. Usei a mesma estratégia para desmotivar o crime. Eu estava petrificado de medo. Depois que Charles contou sua história, e que eu fiquei demonstrando interesse, fazendo mil e uma perguntas para ganhar tempo de minha carona chegar, o primeiro levantou-se e veio em nossa direção. É agora, pensei. Chegou o momento. Não sabia como reagir, nem mesmo conseguia mais manter a aparência tranquila. Eu estava transtornado e estava visível nos meus olhos. Presa fácil, que não saberia nem para que lado correr. O rapaz reveio e disse que iria na praça, perto do trailer de lanches, ver se descolava mais algum para comer alguma coisa. Charles, mais que prontamente, enfiou a mão no bolso e disse: cara, eu não tenho muito para ajudar. Estava guardando para juntar e tomar uma pinga, mas tô vendo que hoje não vai rolar. Tirou do bolso uma moeda de vinte e cinco centavos que entregou na mão do outro rapaz. O rapaz mais solidário do que eu. Pelo menos mil vezes mais. Senti-me um lixo. Humilhado. Horrível, mas o medo lá, ainda presente em cada poro do meu corpo.
 
Partido o primeiro para a praça, Charles me contou que tinha um cachorro e que não era fácil conseguir comida pra ele e para o amigo animal. Entre médio e pequeno, de cor amarelada, ele disse que Amarelo era sua fiel companhia, e que mesmo sendo difícil ele se mantinha com o cão, porque um cuidava do outro, e nas noites mais frias, um também aquecia o outro. Investiguei o quanto pude a história do morador de rua com o seu cão, até que a carona chegou. Carro estacionado, motorista olhando tudo e achando estranho, eu me despedi e parti para ocupar meu lugar de copiloto, deixando Charles que nem tinha para onde ir plantado ali naquela esquina vazia. Ele me pediu um dinheiro também, pois que também tinha fome e sede. Abri a carteira, dei a ele uma moeda de um real também. Não tinha mais moedas, apenas notas destinadas ao terapeuta, que se eu pensasse bem, poderia ter dado uns dez reais ao rapaz que não me fariam falta ao ponto de me prejudicar. E o rapaz com fome.
 
Entrei no carro e partimos. Charles para trás, e eu transtornado de medo, fiquei ali naquele banco de carro recapitulando as duas histórias que acabara de ouvir. Eu sofro de ansiedade, e tenho todo o respaldo necessário para me tratar. Senti a injustiça social que eles sofriam e senti também que agora eu era parte dessa sociedade que os discriminava. Ninguém me assaltou.
 
Talvez o primeiro tivesse me assaltado se o segundo não tivesse aparecido. Talvez Charles apareça somente para me proteger, porque viu a atitude suspeita. Talvez os dois só quisessem ajuda e nunca pensaram em me assaltar naquela esquina. De qualquer forma, ainda que por estratégia de distração, dei a eles um pouco de atenção e ouvi suas tristes histórias. E eu os julgara durante os longos 12 minutos que passei na companhia deles. Quem era eu ao lado de Charles, que nem para si tinha e ainda ajudou o primeiro?, que cuida de um cachorro de rua?, que veio ali e, ainda que não fosse sua intenção, protegeu-me?, que tudo isso e eu, mesquinho, ali parado tremendo de cima da minha empáfia favorecida.
 
Existe muito lixo nas ruas da cidade. Mas naquela noite, eu vi também que existe muito lixo dentro das casas, bem confortáveis, com comida quentinha. É assim que eu me senti depois da experiência. Um lixo e nada mais. Uma única experiência mostrou que meu discurso de esquerda, de favorecimento dos pobres, de não ao preconceito e à exclusão social, de amar a tudo e a todos, tudo ali foi para o esgoto naquela noite. Eu não me sentia mais nada daquilo. Apenas descobri o lixo humano que eu era. Lixo com dinheiro no bolso e coração de pedra de medo e de falta de compaixão.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Dia do Homem (pra quê mesmo?)



O dia do homem é todo dia, numa sociedade de base machista e patriarcal, como é no Brasil e na maioria das sociedades letradas. Qual o sentido de celebrar um dia para o homem? Todas as ações do cotidiano das pessoas já reforçam a supremacia masculina perante a feminina. A data foi recentemente criada, posterior ao Dia da Mulher. Parece-me mais uma contra-palavra do que uma data com intensões de promover a igualdade entre os sexos.
Se pensarmos na lógica do Orgulho Gay, o que temos é um dia que enfatiza que o gay também tem o seu lugar na sociedade. Um lugar que não pode ser exercido graças ao papel hiper ativo dos homens. Como alguém disse e eu gostei, não é um dia para celebrar o fato de ser gay, mas de reivindicações sociais em prol dessa minoria social. É estranho se houvesse o dia do Orgulho Hétero. Não é vergonhoso ser hétero em nossa sociedade. O grupo não precisa de reforços, não precisa sair do armário, não precisa provar que é gente, não precisa nada disso. Os héteros existem e pronto. Eles governam a vida social ainda. Não precisam de políticas de auto-afirmação.
O Dia do Homem pode ser pensado na mesma direção. Por que precisamos de um dia que reforce o caráter masculino se já vivemos em uma sociedade machista, patriarcal? No outro lado da moeda, temos o Dia da Mulher, que celebra a luta da mulher pelo seu reconhecimento na sociedade e seu espaço nela. Mulher é burra, ganha menos, é fraca, é incompetente, fofoqueira, fútil etc. Todos esses aspectos da mulher são posições criadas por homens e adotadas inclusive por milhares de mulheres. Também, você nasce numa sociedade que te diz e te mostra isso o tempo todo, como discordar? Você nasce numa sociedade que diz isso milhões de anos antes de você nascer, como discordar? Existe uma proposta coerente para o dia da mulher, que não se replica na proposta do dia do homem.
Numa pesquisa sem muita profundidade achei isso:

A diretora da Secretaria de Mulheres e Cultura de Paz da UNESCO, Ingeborg Breines, disse que a criação da data é "uma excelente idéia para equilibrar os gêneros".1 Os objetivos principais do Dia Internacional do Homem é melhorar a saúde dos homens (especialmente dos mais jovens), melhorar a relação entre gêneros, promover a igualdade entre gêneros e destacar papéis positivos de homens. É uma ocasião em que homens se reúnem para combater o sexismo e, ao mesmo tempo, celebrar suas conquistas e contribuições na comunidade, na famílias e no casamento, e na criação dos filhos (wikipedia).

Como se quer combater o sexismo fazendo um dia para glorificar o grupo que já tem a força social maior? Como se pretende equilibrar os gêneros se o homem já é o lado mais pesado da balança? Não deveríamos colocar mais peso nos outros pratos para igualar de verdade? Fora a saúde do homem, o resto da argumentação está em torno da questão do gênero. Isso reforça a ideia que coloquei no começo do texto. Celebrar as conquistas e contribuições na sociedade feitas por homens? É claro que foi feita muita coisa por eles, afinal, eles coibiram as mulheres de exercerem suas próprias vidas durante séculos! Alguém tinha que fazer o trabalho, não é?

Na mesma página, temos alguns objetivos, que eu destaco um: “Destacar a discriminação profissional contra os homens nas áreas de serviços sociais, nas atitudes e expectativas sociais e no direito”. Coitados, não? Não consigo aceitar o argumento, a não ser se for para refletir sobre o que eles fazem com as mulheres. Um tipo de “sentiu na pele, né?”.

No Brasil Escola, eu li:

O artigo 1° da Declaração Universal de Direitos Humanos relata:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”
O Dia do Homem tem igual importância ao Dia da Mulher, pois ambos têm o seu espaço na sociedade e buscam objetivos semelhantes como a promoção da vida, o bem-estar da família, o cuidado com o meio ambiente e a busca pela saúde física e mental.

Bem, já discordei da necessidade dessa data principalmente no que diz respeito ao gênero, mas aqui ainda existem outros argumentos, como a promoção da VIDA, BEM-ESTAR da FAMÍLIA, SAÚDE FÍSICA E MENTAL. Se pensarmos que os conceitos em caixa alta já são elaborados por homens, é lógico pensar que tais conceitos os confortam bem. É tudo uma construção de homem, feita de homem para homem, e as minorias que se encaixem ou morram. Questão de gênero não é questão de saúde, de bem estar, de desmatamento. Tudo isso é questão social. Não é questão discriminatória dos pobres homens. Ser homem não tem nada a ver com reforçar esses aspectos, no meu ponto de vista.

Na machista G1, filhinha da Globo, tem uma matéria sobre o dia fatídico. Uma foto de uma família e a seguinte legenda: “Para a Professora Nayla Ferreira, no dia do homem, o homenageado tem que cumprir com seu papel de chefe de família (Foto: Marcos Dantas / G1 AM).” É isso, então. Ela não entendeu a razão pelo dia do homem porque ela pensa como um homem. E ela pensa assim porque foram os próprios homens que a ensinaram a pensar assim. Ela, professora, como dizem certos políticos, precisa ser bem casada, porque seu salário não dá para bancar o provedor da família. E a mulher? Não pode ser chefe?

Bom, esse assunto dá pano para manga. Eu vou parando por aqui. Eu sou homem, sou gay, sou maioria às vezes, e às vezes minoria. Não quero esse dia para mim. Eu passo, dispenso. Quem for homem de verdade e souber o que é ser homem de verdade fora da posição machista que comemore. Mas eu duvido que haja. O dia vai mesmo ser celebrado como qualquer domingo: um bando de machos jogando futebol e bebendo cerveja, enquanto as fêmeas cuidam das crias, da limpeza do ninho, da organização da toca. Somos animais, viva o dia do homem.

#Eike pobreza de espírito

Nos últimos tempos, tenho visto noticiado que a fortuna de Eike Batista reduziu consideravelmente de tamanho. No entanto, o cara continua bilionário. Uma pessoa que já teve 27 bilhões de dólares e agora possui apenas poucos bilhões não é um pobre. Bem, eu não conheço a história do empresário, nem sei quais são suas empresas. Leio sempre em manchetes que seu patrimônio está cada vez mais diminuindo e li agora que suas empresas devem 23 bilhões. E então dizem “Eike empobreceu”. Não existem pobres de 5 bilhões de dólares. Não sobraram ‘apenas’ 5 bilhões.
De qualquer forma, não estou nestas linhas para falar do afortunado sob infortúnios. Quero apenas registrar a reação que tenho visto das pessoas. Vejo muita gente feliz com o ‘empobrecimento’ de Eike como se fosse um trunfo, quase que uma vingança particular. Ora, estamos no sistema capitalista. Uns em cima e outros embaixo. Não tenho conhecimento de ninguém que ocupará ao seu trono que esteja ao meu redor, ou ao redor das pessoas que estão ao meu redor, ou ao redor das pessoas que estão ao redor das pessoas que estão ao meu redor, ou ao redor das pessoas que estão ao redor das pessoas... chega, né?
Mas porque celebrar a “pobreza” de Eike? Fazer humor com os fatos da vida é um traço do ser humano e, digamos, uma característica inerente ao brasileiro. É comum vermos tudo, eu disse TUDO virar piadinhas. Mas no fundo, eu vejo que essas piadinhas com o empobrecimento de Eike está cheio de um algo que eu não consigo imaginar o que é. Pessoas brincam na internet com situações típicas das classes menos favorecidas. Coisas que seriam normais, ou ainda que são vergonhosas, são colocadas na rotina do empresário para os internautas se divirtam. É engraçado? Ok, algumas podem ser. Mas porque tanta gente celebra isso? Quem, de fato, está ganhando com isso? Bem, na história com esse Eike aí, eu sei que tem um bom tanto de coisas que podem estar erradas com a política nacional. De qualquer forma, nem todos por aí politizados. Eu, por exemplo, sou muito pouco. Mas estou aí, lendo a tragédia alheia, e lendo o gozo alheio com a tragédia alheia.
Mas por que será que as pessoas se importam tanto? Vou ter que pesquisar muito para entender como o império eikiano chega até mim, como ele me influencia direta e indiretamente. Mas não acredito que eu chegaria ao ponto de me divertir construindo frases que colocam o Eike em situações de pobre. Fiquei pensando se é inveja. Sério mesmo. Será que não é inveja? Daquelas bem breguinhas de vilão de novela mexicana, do tipo “se eu não tenho, fico feliz que você não tenha”. Eu, que não tenho patrimônio algum, penso que se eu perder a mesma porcentagem que ele, eu sim estou lascado. Não ele. Eu e as pessoas ao meu redor, e as ao redor das que estão ao meu redor.

Bem, termino esse post com essas duas dúvidas centrais: o que significa de fato a pobreza de Eike Batista na minha vida, e por que as pessoas escarnam tanto essa situação? Será que só porque eu não entendo posso chamar aqueles que entendem de invejosos, ou a reação não é cabível mesmo? Não sei de nada. Sei da minha vida e dos meus problemas. E é neles que eu foco minha energia e minhas piadas.

domingo, 26 de maio de 2013

O alho e a cebola [que eu queria ser]



Eles estavam lá. Parados no mesmo lugar não sei precisar quanto tempo. Digamos que tempo o bastante para se entediarem com a condição deles de estáticos na cozinha perto do fogão. O calor dos momentos culinários os fizeram despertar de dentro de si uma vontade imensa de crescer. E assim fez-se o primeiro broto. A cebola já mostrava uma raminha verde que fazia parecer nela um cabelo natural. Sabor cebolinha. O alho, de uma das pontas, lançou ao ar também um singelo caule. Ambos ali, sem conversar um com o outro, tiveram a mesma ideia. Eles estavam plenos de vontade de crescer. De saltar da condição mórbida de serem tão simplesmente consumidos.
Vendo o desespero deles em querer chamar a atenção para a real necessidade de suas vidas, eu me compadeci. Primeiramente, como um bom ser humano, perguntei-me até que ponto aquele dente de alho, saltado de um sorriso alhado, e aquela cebola, pulsante de cabinhos de cebolinha, continham vida naquele corpo estático e cego. Quando vi que não chegaria a conclusão alguma, resolvi agir mesmo assim. O dente de alho, coloquei no vazinho de violeta, vizinhos que nem se falavam antes. Também, não se viam. A cebola, esta foi parar dentro de um copo com água.
E foi o que aconteceu o milagre da vida, que já havia naqueles corpinhos. O alho ganhou força que buscou na terrinha e jogou o mais alto que pôde seus caules de alho. Talvez fosse novo alho e se sentisse um pé de feijão mágico. Um pé de alho mágico, no mundo dos alhos. A cebola em seu copo de água começou a jogar por todos os lados da outra extremidade uns pezinhos de raiz. Se tivesse terra ali, provavelmente, ela também se estabeleceria como moradora fixa do copo. Em outro bairro, outro contexto, ainda na cidade da cozinha, fizeram uma comunidade muda. A violeta desflorada, o alho e a cebola. Não se sabia quem queria mais da vida.
De qualquer forma, eles cresceram tão prontamente, como se tivessem nascidos para isso apenas. Nem se lembram mais hoje em dia que virariam temperos, de tão distante que essa realidade ficou. E o que eu fiz para contribuir? Alimentei.

Depois de um tempo, fiquei pensando. O que tem esse dente de alho e essa cebola que eu não tenho? Por que eu não consigo fincar raízes e lançar ao alto meus ramos científicos? Esse alho e essa cebola eram minha inspiração cada vez que eu olhava para eles. Mas quando eu me via na força de fazer pulsar meus brotinhos, simplesmente eu não conseguia. Imagino minha orientadora tentando me alimentar de alguma forma, e eu me negando como uma criança mimada. Se eu fosse tão receptivo quanto o alho e a cebola que eu ajudei a vingar... mas não. Eu não era. Então, estou aqui nestas palavras tentando buscar dentro de mim uma porção heroica de alho e cebola. Não sei a energia específica para fazer nascer o primeiro brotinho, o primeiro pontinho de caule. Mas quando eu descobrir o segredo, quero ganhar os céus também. Eu posso, porque eu também tenho dentes e cabeça. Talvez eu esteja no bairro errado, deslocado, procurando um lugar de onde tirar os nutrientes que me faltam. Mas eu me mexo. E se mexer sem saber para qual direção ir é o mesmo que não se mexer. Igual aos dois, que sem poder se mexer, sempre souberam que direção tomar. Eu quero ser um alho. Eu quero ser uma cebola.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Droga da Intimidade


Muitos a chamam de droga. De fato, existe uma parte bizarra da intimidade que as pessoas rejeitam, em geral, que é quando ela se manifesta por meios mais escatológicos. Flatulências e arrotos a parte, a intimidade é algo de muito mais positivo que negativo.
Com a intimidade eu sei o que não só que o outro está à vontade comigo, mas eu também posso medir o quanto o outro me deixa à vontade ao seu lado. Estar em uma relação, seja de que natureza for, a convivência é necessária. Tendo isso, a intimidade é consequência. Estar à vontade para dividir não só as coisas boas ou ruins da vida, mas as minúcias do cotidiano.

Ao tratar dessa questão, sempre tenho a sensação de estar falando de ficar grudado a vida toda, fazer todas as coisas juntos, dividir cada e todo pensamento. Esse é o formato de relação que eu gosto, que eu estabeleço com os meus iguais, sejam eles amores, amigos, colegas, bichos, espíritos, loucuras e por aí vai.

De qualquer forma, é a intimidade que me mostra o quão eu posso ser aceito na rotina de outra pessoa. É a intimidade que me deixa ver que o outro me aceita, sem precisar concordar comigo, sem precisar melindrar para me dizer issos e aquilos. A intimidade serve para isso, para otimizar as relações. Ela é a ponte que faz os sentimentos mais íntimos migrarem de uma boca para a cabeça outra.

Intimidade, para mim, é algo que vicia. Acordar ao lado de alguém ver como ela fica descabelada logo cedo, ou como ela se comporta em seus ritos matinais. Saber o que a irrita, como acorda, como dorme, se sonha em voz alta, ou se cala na noite escura. Intimidade para confessar os desejos mais sórdidos, abrir-se e pensar a si próprio, repensar-se. A intimidade é algo que impregna nas relações e as deixam cheirosas, com gosto de vida vivida. Ela se faz sob os meus pés como ladrilhos de uma viela pela qual ainda estou passando. Olhando para o chão, eu vejo onde os passos são íntimos e onde não são. Piso sempre sobre a intimidade. Ela é um sustento para a alma.

Concluo, pois, reforçando o ditado popular: a intimidade é uma droga. Ela vicia, me deixa sempre querendo mais. Me deixa pensando nela durante o dia, me deixa sentindo sua presença ou sua ausência à noite. Minhas manhãs não são diferentes com ou sem alguém. Elas mudam sim, com a presença/ausência das pessoas ao meu redor, mas elas mexem na minha dinâmica, apenas. Não me seguram, não me impedem. Elas me impulsionam. Eu sou viciado em intimidades. E cá para nós, eu sou íntimo de muita gente por aí. Cada uma dessas intimidades me dá uma relação diferente. A intimidade é o meu termômetro de bem-estar. Eu, que fujo de gente desconhecida sempre, uso esse artefato das relações como um termômetro de bem-estar. Estou bem se estou íntimo. Se estou distante, eu não estou nem mais eu. Portanto, não estou nem mais aí. 

terça-feira, 14 de maio de 2013

Colateral


Que os efeitos do rivotril são fortes, todos já sabem. Que misturado ao álcool, seu alcance é ainda intensificado. Chegamos ao sono Rem, Sem, Tem, Vem, Zen. Toda a turma de sonhos profundos.
            Acontece que acordar durante o efeito que deveria te colocar para dormir se constitui na grande cilada. Se você se lembrar, se for o caso, o que sua memória disser: 1, não é confiável; 2, pode ter certeza de que ela apaga um pouco das nuances, tudo foi mesmo muito mais do que você imagina. Bem, agora vamos à experiência rivotriliana.
            Eu e minha amiga voltando para nossa casa, de uma viagem que dura em média 11 horas. Quando temos sorte, fazemos em menor tempo. Mas de qualquer forma, horas e horas de ônibus é, para mim, um convite a algumas gotinhas mágicas. Elas simplesmente me transformam em alguém que eu sou, só não exerço. Eu sou calmo também. Durmo e tudo, menos quando o assunto é viagem. Aí a coisa pega para o meu lado. E então, peguei eu o frasquinho e gole gole gole... três não, cinco gotinhas e 20 minutos depois, eu estava lá, apagadíssimo.
            Às tantas da madrugada, o ônibus num desses pit-stops grandes preparados para enfiar a faca e rodar no bolso do passageiro pobre. Lá estávamos. Eu, minha amiga e as gotinhas. Eu só me dei conta mesmo do que estava acontecendo quando eu terminava de beber o suco. Bebi tão rápido que só me dei conta mesmo de tudo o que acontecia quando ela questionou um “já bebeu tudo?” que me colocou na realidade. Sim, já bebera tudo. O filho da putinha ainda me seca por dentro. Fico parecendo a garganta do Saara.
            Parada em Araraquara. Pegar outro ônibus para São Carlos. Vou correndo ao guichê, pois temos míseros 5 minutos para retirar as malas e comprar as novas passagens. Dividimos as tarefas. Ela cuidaria das bagagens e eu das passagens. Na fila, quando chegou minha vez, eu pedi claramente: duas passagens para Maringá, por favor. E o cara “o quê??”. Eu, com cara de dócil e paciente, mas sem paciência alguma, expressei pelos cantos das gotinhas o meu mais venenoso MA.RIN.GÁ. E ele respondeu humildemente um “não fazemos essa rota, senhor”. “Como não?”, respondi uma arara já. “Eu vim de lá para cá com essa linha de ônibus e agora não tem mais? Impossível”. Ele, com toda a calma que o cidadão tinha que ter [eu também, mas não fui tão espirituoso], disse: nós fazemos só o estado de São Paulo.
            Na hora me toquei que pedia passagens para a cidade errada. “Então me vê duas para São Carlos mesmo, vai?!” respondi como se tivesse a maior lógica do mundo. O homem achou estranho, fez cara e tudo, mas preferiu nada comentar. Serviu as passagens, paguei e fui embora fingindo ter lógica.
            Ri melhor quem Rivotril, uma vez me disseram. Eu sei que fiquei rindo depois comigo mesmo e com quem mais recontei a história. Confesso que não foi exatamente o que aconteceu, mas as palavras pedem um tempero que a vida real não tem. Se não, nem escreveria.

Espelho mágico


O professor pedira aos alunos que escrevessem um texto. Deu-lhes todas as condições necessárias. Trabalhou com eles o tema central da produção e levou textos que os auxiliariam a pensar sobre o assunto. E lá se foram para casa o aluno e a sua tarefa: a escrita.
Sentado em seu quarto, com o computador ligado, ele olhava para a tela branca de seu editor de textos. Sim, um aluno modernizado, que desconhece o poder do papel. O fato é que estava ali, a tela branca, e à luz que se tinha no ambiente, ele podia ver-se naquele papel metamorfoseado em tela. Ele via seu próprio reflexo. E o seu reflexo também o via.
Foi assustador à primeira vista entender que quanto para mais dentro dos próprios olhos ele olhava, mais ele se via. Estava espantado de ver-se tão nitidamente no reflexo daquela tela. Ele era ele e se reconhecera ali. Não tinha como ser outro, se não o próprio.
Decidiu brincar com a imagem. Como não gostava de escrever, colocou-se um jogo para motivá-lo. Escreveria até que as manchas pretas em forma de letrinhas cobrissem a sensação que tinha de se olhar. Assim, acreditava que iria se sentir menos exposto, protegendo sua ignorância acruada em sua própria vista com um escudo de letrinhas vazadas.
Escreveu sobre o tema aquilo que julgou o que devesse ser escrito. Leu, releu e surpreendeu-se em reler o texto. Não se espantava com o que produzira, mas com a própria ação de reler o que tinha posto na tela. Nunca fazia isso. Mal olhava-se no espelho, quem dirá reler seu próprio texto.
O fato é que todo manchado de curvilíneas e retilíneas apretejadas em seu écran, ele deu por concluída a árdua missão da escrita. Agradeceu ao corretor ortográfico e encaminhou sua obra ao e-mail do professor. Achou que com tudo que tinha escrito esconderia sua verdadeira face, a de desinteressado. Fez o que lhe pediram e ele cumpriu, afinal, era disso que viva a vida escolar.
O professor, por sua vez, ao receber o texto de seu aluno, abriu de pronto e colocou-se a ler, preparado para fazer notas sobre o que leria nas próximas linhas. Primeiro passou os olhos por cada palavra, por cada expressão. Leu os olhos do rapaz, entreabertos, divididos entre a atenção e o despero, entre o sono e a vigília. Leu também os lindos traços do rosto jovem, desejento de cama e de festa. Leu ainda nos cantos dos lábios que um beijo estava escondido ali. Estava tudo escrito. Aquilo era um porta-retrato de seu aluno. O professor nunca havia visto aquele rapaz dessa maneira. Dali para frente, tudo seria diferente entre os dois.
Quando o texto voltou ao e-mail do aluno, já era outro retrato. Quando abriu o arquivo, o aluno espantou-se ao ver nas notas do professor um suposto filho seu. Era pai com o professor de um filho que ambos geraram. Era a cara do menino, mas tinha traços do professor. Eram agora criadores da mesma criação. Eram deuses de mãos dadas. O professor vibrava quando olhava para seu espelho mágico em forma de texto e via nele o rostinho de seu aluno. O aluno não ligou.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Deixa falar a intuição






Quando o sono brinca de esconde-esconde entre as cobertas, os travesseiros, entre os olhos, mas nunca ousa entrar? Nem como um fantasma que criam invadir os corpos pela boca, deixei a minha aberta, chamando o nome de Morfeu até altas horas da madrugada. Era calor, era frio, era neutro, era bom, era ruim, era indiferente. A falta de sono misturada com a obrigação de dormir faz isso com as sensações. Ler e entregar-se à falta do sono, ou tentar dormir a todo custo? As dúvidas que pairam no ar, cercamos com essas perguntas da ordem do agora. Mascaramos as mãos que tiram o sono da gente com medidas paliativas para encontrar um meio de pregar os olhos... olhos pregados. Sensação mais cristã que me deu agora. Preciso me purificar. Entre o sono e a vigília, eu passei um tempo na cama. Um tempo na mesa. Um tempo na sala. Um no jardim. Bolei mil receitas, consultei meu horóscopo, fiz um mapa astral. Fiz as contas do orçamento do mês. E o sono só me observava do seu canto majestoso. Deixei até uma armadilha na cama para ele. Pegaria a força se necessário fosse. Mas não. Não foi preciso. Quando parei de prestar atenção que não dormia, despreocupei. Dormi. Talvez essa seja a minha sina. Deixar de olhar diretamente para poder desenrolar. Uma lição para enfrentar as Hydras da minha vida. Não olhar diretamente. A solução não está nos olhos dela. E o fato tão socialmente consumado de enfrentar tudo de cara? Ah, sociedade... desde quando mesmo é que estamos falando a mesma língua? Vou olhar para os reflexos. Vou refletir sobre os reflexos. Vou procurar nos espelhos aquilo que eu nunca vi. Vou olhar para a moldura e deixar que minha mão empunhe a espada e vá para a guerra. Vou atrás dela, mas deixo a intuição falar um pouco mais alto agora.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Quando tudo está bem, o que se torna difícil?


Quando as coisas vão bem, o que se torna difícil? Hoje, um professor meu fez uma brincadeira comigo, dizendo que eu vivo em crises. Disse que sim, que era normal de mim. Mas quem não vive em crises?, pensei depois? Ele, será? Bem, depois de sua provocação, ele em si não importa mais. Importa tudo o que restou na minha mente inquieta. Preciso de dinheiro, preciso de emprego, preciso de boas ideias para desenvolver meus projetos e minha pesquisa do doutorado. Vendo que já estou a caminho de todos esses objetivos, sobram poucas crises para administrar. Assim, sobra fôlego e intervalo entre elas para desenvolver esses passos que me faltam dar até chegar a esses objetivos... mas a pergunta ficou na minha cabeça: por que eu vivo tanto em crise? Nem sei mesmo se é essa a minha natureza. Acho que nem é. Eu sou conhecido por mim mesmo como alguém que leva a vida numa boa, como alguém que ama viver e estar vivo. Confesso que tenho tido tempo e disposição para aproveitar um pouco a vida, mas também tenho me dedicado duro na missão de me tornar um alguém válido socialmente o mais rápido possível. Mas o relógio não funciona ao nosso desejo, nem se dá conta das nossas vontades. A espera é uma das partes da vida que menos gosto. E esperar por alguém que não chega parece se tornar um pouco da minha sina. Isso só porque eu é que fico esperando. É ninguém mais do que a minha própria pessoa que cria a sensação de espera. A expectativa. Todos nós vivemos melhor sem ela. Eu, que odeio expectativas, estou aqui, cheio delas, sem saber onde enfiá-las. E eis a minha mais nova crise. Sorte minha eu me amar o bastante para ter forças para deixar tudo isso para lá. Quando as palavras que eu escrevo vão se materializando na frente dos meus olhos, eu sinto como se eu mesmo tirasse de mim um espinho que me atordoa. Eu sou a minha própria cura. Nada de remédios por hoje, e que esse hoje dure o mais longo dos tempos. Tanta patifaria de ansiedade, tanto alvoroço, depois tanta morbidez com tanta medicação, e no fim, estou eu aqui de novo, sendo ninguém mais que eu mesmo, um alguém em plena crise. Crise que eu posso abdicar, mas não quero. E o professor lá, com aqueles olhos azuis me falando: você está em crise. Tudo em volta daqueles faróis vão se apagando e seu rosto vai se modificando, transfigurando. Os olhos são a janela da alma. A minha não tem janela. Tem uma porta bem larga, um buraco bem fundo. Um vazio intenso todo preenchido de crises a serem administradas. Estou para conseguir um trabalho graças à doença de alguém que será levado a uma mesa de cirurgia, que será impedido de trabalhar por dois meses. Como eu posso odiar a doença? Seja a minha, seja a do outro, é ela quem me abre portas, às vezes. O que é bom e o que não é? Nas crises também aprendo. Hoje, aprendi mais uma lição. Vou respeitar melhor minha condição e viver melhor comigo mesmo. Afinal, eu me amo, tenho que suportar minha própria companhia. Pergunta inicial: quando as coisas vão bem, o que se torna difícil? Acho que minha resposta é lidar comigo se torna difícil, porque quando não estou em crise, resta-me tempo de sobra para olhar para mim mesmo. Nem sempre gosto do que vejo. Alguns ajustes precisam ser feitos. Assim seja, assim como está é que não pode ficar.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Efeitos das medicações


Quando estou medicado, tudo ao redor vai perdendo os tons das cores. As mais vivas vão ficando opacas. As boas notícias vão ganhando um gosto de indiferença. Tudo o que eu preciso nesse momento é botar para fora um choro que fica escondido na garganta da alma. Mas os remédios se transformam cada vez mais numa barreira intransponível.
Ontem, tive uma proposta de emprego que me pareceu bem razoável. Um bom plano. Uma sensação de que pelo menos metade das razões das minhas angústias estaria resolvido. Depois da entrevista, das notícias, eu fiquei ali, extasiado?! Não, fiquei feliz. Mas uma felicidade um pouco mais distante, impessoal. Era como saber que alguém que eu não conheço conseguiu algo que precisava muito. Não parecia ter relação comigo.
Talvez seja esse o ponto. Medicado, eu não me conheço. Dizem-me nem notar diferença. Isso me assusta um pouco. EU me sinto diferente. Eu me sinto neutralizado, neutro. Eu não me sinto eu. Sorrio menos, abraço menos, beijo menos, desejo menos. A combinação bombástica de rivotril e exodum me deixam assim. Eu fico com ânsia de vômito no papel de reações adversas. Mas fico ali. Neutro.  Se eu tivesse uma estante no meu quarto, tenho certeza de que seria um lindo bibliocanto. Eu adoraria escorar meus livros. Eles não têm falado comigo da maneira necessária. Mas eu os escoraria, para mantê-los bem em pé.
Nessa sociedade somos tão objetificados tantas vezes que querer ser um objeto talvez seja parte. Ainda não quero com tanta força ser neutro. Ontem foi o primeiro dia de combinação desses medicamentos. Uma hora, no período da noite, um deles começou a perder o efeito. E aí eu ri, sorri, quase até que gargalhei. Ouvi músicas, cantei, dancei. Mas passou. No lugar da quase euforia vem o nó na garganta outra vez. Êta nó que não desata.
Agora, estou aqui, novamente medicado. Vendo tudo pender para os tons de preto e branco. A comida já não me atrai, a bebida não me diz nada, os amigos, fico feliz de tê-los por perto, mas não tenho mais força para busca-los. Aquela companhia que parecia ser indispensável, de repente, tornou-se uma visita distante, uma visita rápida.
Quando eu parar com as medicações [sim, porque eu pretendo parar], tudo vai voltar ao normal, aos poucos. E eu espero conseguir recuperar um pouco desse eu que eu gosto e prefiro.  Mas por agora, eu sei que lá no fundo tem um de mim que quer chorar. Mas não chora. As lágrimas foram secas com lenços de exodum.
Para quem busca entender os efeitos desse medicamento, fica aqui a dica: é o ensaio da morte. O sono é pesado e sem fim. Não se sonha. Não se fantasia. Dorme-se e fim. Ponto final. Um ponto final que dura até o dia seguinte. Cada dia mais, cada remedinho mais, o lindo nascer do sol se torna tão comum que a sensação de ver cada manhã um espetáculo se torna mais maçante que ver um filme longo e chato por repetidas vezes no mesmo dia.  Estou começando a entrar de novo na parte do tratamento que parece que vivo dez mil vezes o mesmo dia. Mas isso também vai me ajudar a ficar calmo para estudar. Ah, pelo menos isso. A médica disse que nesses momentos eu devo buscar fazer o que me agrada, o que me deixa feliz.
O que me agrada... o que me deixa feliz...  humpf. Não quero mais pensar nisso.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Crises de ansiedade, fascículo mil


Tudo na vida tem o seu preço. Negligenciar o tratamento de transtornos de ansiedade também está neste pacote. Como fere uma crise. Como perder o controle de si é ruim. Mas as coisas parece que nunca se formam na minha cabeça como uma base de aprendizagem. A ansiedade não me deixa ver que é ela que está por trás de pequenas oscilações de humor durante o dia. E quando a coisa estoura, pronto. Já é tarde de mais.
Já venho dizendo há alguns dias para mim mesmo que estou sentindo uma leve ansiedade, uma inquietude que fica dentro do meu corpo, que vira uma vontade estranha nos pés de caminhar sem rumo. Mas no sábado eu me segurei. Durante o almoço com pessoas de bem, tudo parecia sob controle. Tudo mesmo. Nada parecia tocar aquela sensação gostosa da paz que é de estar entre gente querida. Mas não.
De repente, depois de termos comigo, no tal do cigarrinho de depois, eu passei a sentir um quê de incômodo, mas não sabia dizer exatamente o quê. A coisa foi toando formato e de súbito lá estavam minhas mãos esfriando e meu estômago querendo se desfazer daquela refeição tão bem preparada, gostinho de amor. A ansiedade aumentando e eu acreditando que era a pressão caindo. Talvez fossem os dois juntos, de mãos dadas, moldando o meu eu que surgiria nos dois dias seguintes. O desconforto do estômago e a tontura, a tremedeira, o frio por dentro do corpo, tudo estava lá, germinando. E eu apostando na pressão. Mas acabei por entender que era que estava ficando ansioso.
Rivotrilei um sublingual e esperei, deitadinho no chão, no quietinho, esperei a espera para o efeito começar. E começou. O jardim voltou a ficar verde, as plantas e as flores voltaram a brilhar naquele jardim que me assistia sucumbir sem mesmo que eu soubesse o que acontecia. Não sei pontualmente o quê, claro, mas algo estava fora do lugar. Talvez fosse só minha paz de espírito, que foi se alongar por aí, para lá de mim.
O dia terminou de passar lindo. Cuidamos do jardim, cuidamos das plantas e a noite cuidou de nós. A lua enluarou toda a cena e enfeitou com seu ar prateado nosso triunfo sob o espaço verde. Que lugar gostoso aquele.
No dia seguinte, eu, crente que era fortão, passei o domingo de manhã na companhia das mesmas alegrias do dia anterior. Mas foi chegando mais gente, e mais e mais. E eu lá, acreditando na força que eu não tenho, mas que naquele momento eu tive. Eu me comportei. Muitas risadas e muitas conversas. Partes leves e pesadas dos que partilhavam daquelas xícaras de café de amizade respingavam na minha alma. Ora me faziam rir, ora me faziam pensar em mim próprio, nas minhas ações. A história do castelo de areia, daquele que não saiu da planta. A planta que não saia da cabeça de sua arquiteta. A relação unilateral fadada ao fim. E lá estava eu, de plateia. Parecia que eram pessoas contanto minha própria história, espalhada em diversas bocas. Mas ouvi tudo e calei. Quando oportuno, opinei. Às vezes, eu só queria sair, ir embora, partir. Mas por quê?, eu me questionava. Estava tão bom ali? Minha adrenalina brincando nos meus pés não entendiam nada disso.
Domingo à noite terminou na rua, com bar e mais gente. Na mesa, aqueles de antes, mas em volta, mais gente ainda. Eu estava lá, claramente me convencendo que eu era forte. Escondi até de mim mesmo o desconforto social. Ansiei e até mesmo tive momentos de querer levantar e partir. Mas fiquei, eu era forte, pensei. E fui. Fiquei até o fim. Até que todos juntos se levantaram e seguiram seus rumos. E eu segui o meu, que não era bem o meu, mas era um rumo que mantinha bom compasso no meu coração. Ahh, coração, coração. Batendo ora forte, ora fraco, ora lento, ora rápido. Mas sempre batia. Eu estava vivo e tudo isso faz parte da vida.
Segunda-feira, dia do terror. Logo pela manhã, acordei com um grito preso na garganta, um grito que eu abafei e impedi de sair. Gritei para dentro de mim. Era o que tinha que ser feito. Soltei pequenas pílulas de estresse e descontentamento, percebido de leve por aqueles que estavam do meu lado. Mas nada de alarmismos. Eu nem mesmo sequer comentara dos riscos que eu mesmo sofria. Acreditei, com a força da minha ingenuidade, que tudo passaria jajá. Mas não passou. Foi crescendo. Briguei pelas pequenas coisas da vida, pelos pequenos planos do dia. Chutei a porta dos estabelecimentos que precisava ir. Não sorri para ninguém. Não tinha sorrisos guardados naquele dia.
Então, de volta para casa, achei que estava seguro, protegido. Consciente de que eu precisava mesmo era relaxar, preparei para mim mesmo uma bela de uma caipirinha. Desceu gostosa pela garganta. Pareceu ter mesmo lavado os gritos sufocados que eu escondi. Uma, duas, três. Até que os planos mudaram. Bem acompanhado, fui a um bar, bem típico, onde ficássemos à vontade. O mesmo bar do domingo. Lá, comemos, bebemos. Rimos e fomos felizes. Mas não, algo era crescente em mim. Bastou a gota d’água para fazer tudo ir pelos ares. Não importa qual gota tenha sido essa, já estava tudo voando para todos os lados. Meu olhar perdido, não focava, procurava um certo conforto que não estava naquele lugar. Fomos até a casa de uma amiga. Lá, mais gente desconhecida. Era para eu ter me sentido acolhido, porque fizeram de tudo para que fosse assim.
Tentei impedir. Tentei escapar dali. Consegui. Corri, mas não sabia para onde eu ia. Cheguei em casa, mas não durei muito tempo. Saí de novo. Andei andei andei e fiz tudo o que eu podia para me arrepender pelo resto amargo do dia da terça. O feriado que minha paz tirou para descansar de mim. Nesse episódio maluco, 5 doses do sublingual rivotril nem fizeram cócegas em mim. Tiraram-me o olhar de loucura. Não me trouxeram nem um pouco de doçura. Saí às 3h40 para caminhar. Caminhei por uma hora, e na hora seguinte foi a vez da minha razão sair por aí.
Eu tenho sorte ainda assim de ter boas companhias. Não gosto de envolver as pessoas nas minhas crises de ansiedade, de pânico. Mas não consegui evitar. Quando vi, estava feito. E agora estou aqui, juntando os meus próprios cacos. Está certo e claro, eu não sou forte, sou fraco. Vou retomar meus remédios depois da aula tensa de amanhã.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

A paz que deus (não) me deu.


Quem sabe dizer do que se faz o coração? De fibras musculares que fazem pulsar o sangue por todo o corpo? Não é do coração físico, mas do sentimento. Onde esses dois se encontram? Esses dois corações que batem em meu peito? Por que os dois devem bater no peito? Quem decidiu que o coração emoção moraria no peito foi o próprio coração razão. Seria esse um sinal que a razão está sobre a emoção e não o contrário? Sim a resposta é essa. E eu odeio conhecer a razão, dominar a razão, e a emoção ao deusdará. Que deus, o quê. E o que ele dará? Ele tem me dado desgosto só. Tem orientado seu povo na terra contra o amor. Tem orientado o povo na terra a favor dos formatos quadrados, retilíneos, straghts. Eu odeio esse deus. Esse cara que existe na cabeça das pessoas e que diz que ama todos mas que vai me mandar para o Inferno. Eu já estou no inferno, cara. Eu já conheço o calor que faz por aqui. Logo o calor, mais confortável que o frio. Um deus de amor que vive de obstáculos. Um deus platônico, cujo amor é inatingível. Eu me sinto um romântico olhando para esse deus. Por isso escolho meus próprios ídolos. Não adoro ovelhas de ouro, deus sim. Não em formato de ovelhas. Em formato de ouro. Não é de hoje, é de séculos. Eu não acredito no cristianismo. Eu não acredito no formato que ele deu às emoções do ser humano. Eu não acredito no pecado, porque eu não sei dizer o que é certo e o que é errado. Eu mentiria se dissesse que a bondade é o caminho, porque o que eu sei da bondade foi esse mesmo deus quem me ensinou. Eu não confio nele. Essa é a minha profissão de fé. Eu desconfio dele. Eu odeio ter que negar a letra maiúscula cada vez que escreve o substantivo que se refere a ele. Ele. É onde sua letra maísculua cabe. No incício de frase. Eu faria um d bem grande, em formato de minúsculo bem na fuça da frase para mostrar meu descontamento. deus, me deixe em paz, a dita que você tanto quer pregar entre nós. Eu não acredito nos seus propósitos. Você é uma invenção humana, assim como eu, como o amor que late no meu peito. Como o coração que pulsa fora e dentro da minha razão. Eu amo o amor, mesmo sem saber direito quem ELE é. E se não o sei, a culpa é somente Sua, ó deus dos desmisericordiosos. deus dos seres não odiosos. Eu sou odioso, eu sou detestável. Eu sou meu próprio deus, à imagem e semelhança do que eu penso ser sacro para mim. Eu não me conheço, meus sentimentos vivem num poço sem fim. Esses meus sentimentos que muitos anos deus atormentou dizendo que eu não deveria. Ainda existe a ultima hora para o arrependimento. Ainda existe? Eu já não sei se eu quero me arrepender. Eu quero mesmo é mergulhar nessa lama, pois a terra e a água é igual a vida. A vida que esse mesmo deus me nega viver. Meus corações não batem em compasso. Eu não sei a distância do peito até a cabeça. Eu não sei o que o peito e a cabeça fazem juntos. Deus, me liberte de ti, eu te emploro. Deixa-me ser livre. Não me conte das dez regrinhas que você criou. Deixe que eu crie as minhas. Deixe que eu viva por mim e não por você. Deixa eu fazer meu bezerro de ouro, feito de escárnio e mal dizer. Deixa-me ser livre de verdade. Deixa-me o poder do livre arbítrio. Pare com essa farsa de Inês Pereira. Eis a hora derradeira. Se você me ama de verdade, deixa-me viver na sociedade que eu (não) escolhi. Eu (não) sou mais eu. Deixa-me daqui pra frente ser o meu próprio (Des)deus. 

terça-feira, 23 de abril de 2013

Sentidos para o ar


Quando passou o ar, que em si, era diferente

Meus sentidos se cegaram

O breve toque, seu hiato,

O cheiro, alheio, no inverso vácuo

O gosto na minha boca inventado

Só real como a vista

Fogo etéreo, desejo artista,

Ártico filosofista

E como ar que era, em si próprio se desfez

O tato, o olfato, o palato,

O seco, vácuo.

A visão, a audição,

Ah... ilusória desejada sensação


O cara que voa


Lembrar-se dos sonhos tem sido tão raro nos últimos dias... não por falta de produção onírica, mas talvez por não ter mais a mesma capacidade de me recordar das coisas malucas que nos ocorre durante esses momentos que a cabeça finge que para de funcionar. Bem, vamos ao sonho desta noite. O sonho interrompido. Em geral, não temos títulos para sonhos, mas o sonho é meu e eu coloco um para ficar mais especificamente um texto transfigurado de um sonho.

O CARA QUE VOA

Ana Flávia é uma linda mulher, negra, respira afrobrasilidade. Não existe sorriso na terra que passe mais boa sensação que o dela. Não existe alguém para se estar do lado sem sentir-se num sonho. Pois então que em sonho ela me chamou para uma festa afro-brasileira. Eu, certamente, aceitei de pronto. A festa estava lá, era pensar que ela existia e já estávamos nela.
Minha amiga tinha desaparecido temporariamente, afinal, minha mente produzira a festa quase que instantaneamente com o aceite. Assim, ela não teve nem tempo de se aprontar. E não muita gente preenchia o espaço da festa. Um cômodo para ser mais exato. Um cômodo não muito grande e uma música mais batucada. Banquinhos pequenos e baixos espalhados por todos os lados, mas ninguém tomava o acento. Todos ficavam dançando para lá e para cá.
Aos poucos, fui me dando conta que as pessoas iam ficando de roupa branca, tudo foi ficando branco. Até que chegou Ana Flávia. Seu corpo nu, coberto por uma espécie de tinta que dava em sua pele uma textura de um pó sobre ela toda. Menos os cabelos. Esses, negros do contraste, reluziam mais que o branco. Observei que o pálido apagava seu brilho. Ela veio, não olhou e não falou com ninguém. Pôs-se no meio do cômodo numa posição e começou a fazer uns movimentos que me fizeram crer que eu estava diante de uma manifestação artística. Ela começava sua coreografia com um ritmo no corpo que eu não conhecia. Depois de longos minutos, eu me dei conta que eu era o único que olhava para ela, impressionado. Todos ainda simplesmente dançavam.
Fiquei como que hipnotizado pela linda cena que eu via. Ela olhou para mim com uma frase nos olhos: vem dançar. Era como se fosse uma ordem para o meu corpo. Aos poucos fui abaixando também, contorcia-me como se uma serpente se manifestasse dentro de mim aos poucos. Nem cheguei a me abaixar completamente, já tinha subido de novo e já estava entregue ao ritmo dos tambores. Dei-me conta de que eu também usava branco. Eu não me lembro de ter me trocado. Mas é preciso retomar sempre que é um sonho. Em geral, esses que são mais reais precisam desse toque de “pé no chão”.
O ritmo dos tambores já tinha tomado conta de mim e de todos na festa. Mas tudo foi interrompido por um gatuno. Um ladrão, que simplesmente saiu correndo. Eu não vi o que ele roubara, mas todos correram atrás dele dizendo: PEGA!!! Eu dei uns passos andando mais rápido, junto com a multidão. Eu queria fazer algo de bem para aquele lugar que me tratava a alma tão bem. E num passo largo alcei meu voo onírico. Ah, como me fez bem tomar umas lições de voo sonhos atrás.  Voei por entre os galhos de árvore e entendi que estávamos num sítio, ou numa chácara. Estávamos atrás do ladrão. E eu, pelos ares, cheguei primeiro que todos. Era só captura-lo.
Mas algo na fala dele me surpreendeu. Algo que eu não esperava. Eu fora reconhecido. Ele apontou para mim e disse como se tivesse uma plateia para ouvi-lo: Olha o cara que voa de novo! Fiquei com medo de ser reconhecido. Lembro-me de uma sensação de ter feito algo errado e ter sido dedurado. O ladrão conseguiu inverter toda a minha sensação com um dedo apontado para mim no céu. Estava feito, e eu ali voando de volta entre a copa das árvores, fugindo sabe-se lá do quê.
Claro que significa muita coisa, mas durante o sonho não é momento de reflexões de ajuste de personalidade e de medos e ansiedade. Simplesmente corri voando de volta para a festa. Mas não tinha ninguém lá. Parece que todos estavam empenhados na busca do ladrão. E eu não tinha o que fazer a não ser fechar uma janela que estava lá, aberta para mim. Talvez quisesse só fechar porque era tarde, mas agora escrevendo, parece mais ainda que eu queria mesmo era me fechar do mundo.
E eu fechando as janelas, ou aliás – tentando. Quando de repente, não mais que de repente surge uma cabra pela janela. Uma cabra. Simples assim. Um ser caprino, que colocou a cabeça pelo lado de fora e ficou me olhando. Fez um béééééé. E eu pensei: bom, vou ter que fechar a janela mesmo assim, querida. E quando eu tentava fechar, ela enfiava a cabeça pelo vão. Era uma janela verde, dessas que abrem no meio e fecham com uma taramela. E a cabra lá. Quando criei coragem para empurrar com a mão a cabeça dela, surgiu outra. Elas se revezavam para me atrapalhar na árdua missão de fechar o cômodo... Acordei com o telefone tocando.
Os sonhos sempre trazem sentidos ocultos que nos revelam muitas coisas. A cabra eu vi um gif no dia anterior, um que retratava duas cabras inconvenientes. Eu querendo me fechar em mim, e as cabras querendo quebrar meus planos ao meio. Eram duas que se revezavam. Como no gif, duas também. E eu querendo fugir... que parte do meu dia me anda fazendo querer fugir? Acho que preciso pensar...