terça-feira, 2 de outubro de 2012

Pânico


Era como se tudo tivesse começado de novo. Os medos estavam ali, no lado de fora da noite, esperando para segurar na minha mão durante o passeio. Mas eu tinha que ser bravo, ser valente. Enfrentar e vencer. Fui andando com a cachorrinha por todo o percurso do cotidiano pensando no que tinha acontecido logo na saída. Passei pela esquina dos primeiros cheiros e nem me dera conta do tempo que ela levava para vasculhar com o nariz cada cheirinho daqueles cantos.
                
Os primeiros passos rumo fora do portão foram assistidos por um cidadão, que parou o carro na frente da entrada do estacionamento do condomínio, como se fosse esperar alguém, mas de dentro do carro, via-se somente ele. E ele parecia somente ver a mim e à cachorra. E ela, na paciência e no tempo que demanda uma boa checagem olfativa, longamente cheirou as plantinhas ali da saída. E ele continuou a me olhar. Então, nunca mais olhei de volta. Só no último instante, antes de finalmente terminar de virar a esquina é que olhei de novo e brevemente eu vi. Ele ainda estava lá. Só que agora, fora do carro, em pé. Virado para a esquina. Como se esperasse alguém enquanto olha para a esquina, ou como se esperasse alguém que viesse da esquina.
                
De qualquer forma, a insistência do olhar foi algo que acabou ficando na minha cabeça. No começo, eu não tinha entendido o que tinha acontecido. Mas, parando para pensar, comecei a entender que na verdade eu poderia ser a pessoa que ele estava procurando. E no que vi em seu olhar, suas intenções não eram as melhores. Pronto. Era isso, um pau mandado atrás de mim. Mas quem teria feito isso? Quem me odiaria a esse ponto? Muito bem, sei dos nomes dessa lista, mas nenhum deles o faria naquele instante. Aquilo era indecifrável, para mim. Meus olhos não conseguiam enxergar nada de amedrontado que eu estava.
                
A cachorrinha continuou seu passeio alheia à minha condição. Ela simplesmente cheirava, cheirava e cheirava. Andava rápido, devagar, fazia xixi e cocô, que eu fiz questão de recolher e descarta-lo no lixo, adequadamente.  Mas naquela noite, eu só pensava. O percurso do passeio é sempre o mesmo há tempos. O horário do passeio também. Então, eu tinha entendido que tinha me tornado uma presa fácil. Era mesmo muito fácil me pegar se quiser, porque eu sou extremamente previsível, graças ao um habito de ser metódico por fora para poder ser bagunçado por dentro.  Mas o que eu estava pensando? Não era momento de análise, mas de verificar se existia mesmo sinal de perigo. Era domingo à noite e o movimento na rua era parco. Continuei com a minha valentia o percurso até o fim. Até virar a última esquina, a do outro lado do quarteirão. E para minha surpresa, lá estava para eu refletir.
                
Eu estava no começo da esquina. Se eu contasse a distância do portão do estacionamento até a esquina, eu poderia mencionar a distância de dois contêineres de lixo, dois caminhões estacionados e também de um carro. O mesmo carro. Aquele que tinha parado na frente do portão quando eu saí, agora estava atrás do segundo caminhão. O espaço entre a esquina e o carro, entre mim e o cara, era a areia que corria na minha ampulheta. A cada passo que eu dava eu tinha que pensar em tudo o que estava acontecendo e mensurar tudo. Minha sorte era ter a cachorrinha, que nesse pedaço do trajeto, como se ela estivesse cansada, anda bem devagar. Em dias normais, eu venço esse trajetinho incentivando-a e chamando-a para que ela acelere. Mas naquele domingo foi diferente. Ela teve toda a liberdade do mundo para ver e cheirar cada tudo que ela quisesse.
                
Enquanto isso, eu via o homem me ver levar a cachorra para o passeio. Ele andava meio impaciente, de um lado para o outro. E eu na calçada. E ele na rua e na calçada, na rua e na calçada. Aquilo não fazia sentido para mim. Porque ele ficaria nervoso agora? Não deve ser um profissional, ou está com medo, com a adrenalina correndo na veia para prepara-lo para o ataque. Quando eu andei mais um pouco, e vi que entraria num corredor formado por uma parede de uma quadra de um lado e dois caminhões e dois contêineres do outro. Aquele corredor escuro e cheio de cheiros para a cachorra demorar-se a eternidade tornaram-se um beco, um lugar para agir, um lugar por onde eu não deveria passar, não se quisesse viver, ou seja lá o que fosse. Para completar a minha tensão, a porta do passageiro do carro abre levemente e fica entreaberta.

Porque a porta não abriu totalmente? Por que a pessoa não saiu? Minha mão suava muito frio e meu estômago estava gélido, como se eu tivesse sido perfurado pela ponta de um iceberg. Penei isso enquanto meus passos automaticamente me levaram para a rua, tentando fugir da emboscada. Mas o homem parecia ter ficado mais furioso ainda. Ele mostrava muita impaciência. Mas ele esperou que eu passasse até a metade do segundo caminhão para tomar a primeira atitude e eu ter a primeira reação. Ele entrou no carro e ligou. Deu a partida, saiu rápido de onde estava. Pensei que pudesse ter uma arma e não precisasse mais do que uns milésimos de segundo para acabar com a minha raça. Claro que era isso. Porque mais estaria tão nervoso?

Enquanto, não sabia se corria, não sabia se ficava. Não sabia se olhava para trás, não sabia se abraçava a cachorra. Não sabia nada. E quando o carro de fato ficou na minha mira minha pele perdeu a cor e eu vi sentado no banco do lado a morte... não. Era uma mulher de preto. Uma mulher que sorria inocentemente ao lado do homem que agora parecia satisfeito de ir embora. E eles nem ligaram para mim. Agradecido de não ter reagido em nenhum instante fisicamente, voltei atravessando a rua aos poucos , recuperando as forças nas pernas. Era só uma crise. Só.