Era como se tudo tivesse começado de novo. Os medos estavam
ali, no lado de fora da noite, esperando para segurar na minha mão durante o
passeio. Mas eu tinha que ser bravo, ser valente. Enfrentar e vencer. Fui
andando com a cachorrinha por todo o percurso do cotidiano pensando no que
tinha acontecido logo na saída. Passei pela esquina dos primeiros cheiros e nem
me dera conta do tempo que ela levava para vasculhar com o nariz cada cheirinho
daqueles cantos.
Os primeiros
passos rumo fora do portão foram assistidos por um cidadão, que parou o carro
na frente da entrada do estacionamento do condomínio, como se fosse esperar
alguém, mas de dentro do carro, via-se somente ele. E ele parecia somente ver a
mim e à cachorra. E ela, na paciência e no tempo que demanda uma boa checagem
olfativa, longamente cheirou as plantinhas ali da saída. E ele continuou a me
olhar. Então, nunca mais olhei de volta. Só no último instante, antes de finalmente
terminar de virar a esquina é que olhei de novo e brevemente eu vi. Ele ainda
estava lá. Só que agora, fora do carro, em pé. Virado para a esquina. Como se
esperasse alguém enquanto olha para a esquina, ou como se esperasse alguém que
viesse da esquina.
De
qualquer forma, a insistência do olhar foi algo que acabou ficando na minha
cabeça. No começo, eu não tinha entendido o que tinha acontecido. Mas, parando
para pensar, comecei a entender que na verdade eu poderia ser a pessoa que ele
estava procurando. E no que vi em seu olhar, suas intenções não eram as
melhores. Pronto. Era isso, um pau mandado atrás de mim. Mas quem teria feito
isso? Quem me odiaria a esse ponto? Muito bem, sei dos nomes dessa lista, mas
nenhum deles o faria naquele instante. Aquilo era indecifrável, para mim. Meus
olhos não conseguiam enxergar nada de amedrontado que eu estava.
A
cachorrinha continuou seu passeio alheia à minha condição. Ela simplesmente
cheirava, cheirava e cheirava. Andava rápido, devagar, fazia xixi e cocô, que
eu fiz questão de recolher e descarta-lo no lixo, adequadamente. Mas naquela noite, eu só pensava. O percurso
do passeio é sempre o mesmo há tempos. O horário do passeio também. Então, eu
tinha entendido que tinha me tornado uma presa fácil. Era mesmo muito fácil me
pegar se quiser, porque eu sou extremamente previsível, graças ao um habito de
ser metódico por fora para poder ser bagunçado por dentro. Mas o que eu estava pensando? Não era momento
de análise, mas de verificar se existia mesmo sinal de perigo. Era domingo à
noite e o movimento na rua era parco. Continuei com a minha valentia o percurso
até o fim. Até virar a última esquina, a do outro lado do quarteirão. E para
minha surpresa, lá estava para eu refletir.
Eu
estava no começo da esquina. Se eu contasse a distância do portão do
estacionamento até a esquina, eu poderia mencionar a distância de dois contêineres
de lixo, dois caminhões estacionados e também de um carro. O mesmo carro.
Aquele que tinha parado na frente do portão quando eu saí, agora estava atrás
do segundo caminhão. O espaço entre a esquina e o carro, entre mim e o cara,
era a areia que corria na minha ampulheta. A cada passo que eu dava eu tinha
que pensar em tudo o que estava acontecendo e mensurar tudo. Minha sorte era
ter a cachorrinha, que nesse pedaço do trajeto, como se ela estivesse cansada,
anda bem devagar. Em dias normais, eu venço esse trajetinho incentivando-a e chamando-a
para que ela acelere. Mas naquele domingo foi diferente. Ela teve toda a
liberdade do mundo para ver e cheirar cada tudo que ela quisesse.
Enquanto
isso, eu via o homem me ver levar a cachorra para o passeio. Ele andava meio
impaciente, de um lado para o outro. E eu na calçada. E ele na rua e na
calçada, na rua e na calçada. Aquilo não fazia sentido para mim. Porque ele
ficaria nervoso agora? Não deve ser um profissional, ou está com medo, com a
adrenalina correndo na veia para prepara-lo para o ataque. Quando eu andei mais
um pouco, e vi que entraria num corredor formado por uma parede de uma quadra
de um lado e dois caminhões e dois contêineres do outro. Aquele corredor escuro
e cheio de cheiros para a cachorra demorar-se a eternidade tornaram-se um beco,
um lugar para agir, um lugar por onde eu não deveria passar, não se quisesse viver,
ou seja lá o que fosse. Para completar a minha tensão, a porta do passageiro do
carro abre levemente e fica entreaberta.
Porque
a porta não abriu totalmente? Por que a pessoa não saiu? Minha mão suava muito
frio e meu estômago estava gélido, como se eu tivesse sido perfurado pela ponta
de um iceberg. Penei isso enquanto meus passos automaticamente me levaram para
a rua, tentando fugir da emboscada. Mas o homem parecia ter ficado mais furioso
ainda. Ele mostrava muita impaciência. Mas ele esperou que eu passasse até a
metade do segundo caminhão para tomar a primeira atitude e eu ter a primeira
reação. Ele entrou no carro e ligou. Deu a partida, saiu rápido de onde estava.
Pensei que pudesse ter uma arma e não precisasse mais do que uns milésimos de
segundo para acabar com a minha raça. Claro que era isso. Porque mais estaria
tão nervoso?
Enquanto,
não sabia se corria, não sabia se ficava. Não sabia se olhava para trás, não
sabia se abraçava a cachorra. Não sabia nada. E quando o carro de fato ficou na
minha mira minha pele perdeu a cor e eu vi sentado no banco do lado a morte...
não. Era uma mulher de preto. Uma mulher que sorria inocentemente ao lado do
homem que agora parecia satisfeito de ir embora. E eles nem ligaram para mim.
Agradecido de não ter reagido em nenhum instante fisicamente, voltei
atravessando a rua aos poucos , recuperando as forças nas pernas. Era só uma
crise. Só.