sábado, 5 de julho de 2014

Enquanto isso, no jardim dos temperos


E um pouco antes de começarem os primeiros raios do sol a brincar no quintal, já em perfeita claridade, pude entender o que acontecia com as plantas da minha hortinha de temperos. É uma dessas suspensas, com plantinhas penduradas em vasos fixados em uma treliça de madeira, dessas aproveitadas de mercados, do tipo pallet. Então. Estavam lá a família completa: o Manjericão, a Cebolinha, o Alho, a Batata Bebê, o Tomilho, o Orégano, a Salsinha, o Hortelã, a Menta, o Tomate e a Biscatinha Muda. Estavam todos sendo eles mesmos, bem tratados, com terra nutritiva e o sol da manhã. Era um privilégio. Todas elas com vistas para o quintal, com a Pitangueira e sua filha Pitangueirinha, preparando sua partida. Também de frente com Sinos do Japão, que está florida por conta do inverno. Elas ficam lindas no inverno!
Nessa época de seca dou água todo dia. O Tomate, coitado é frágil. Se não beber água todo santo dia, ele morre. Mas se der muita, ele morre afogado. Então, aprender a dose é um problema, porque cada tomateiro é diferente um do outro, assim como todos os homens são iguais, mas muito pouca gente está disposta a trocar ou partilhar o seu. Bem, e muito menos eu queria lá compartilhar meus vasinhos da hortinha suspensa. Mas às vezes não temos poder de decisão.
E eis que numa manhã, quando chego para dar água, e o que aconteceu com o Tomilho? Todas as folhas caíram. Caíram. Simplesmente caíram. Pof, pof, pof, pof... uma a uma todas estavam escorregadas de seus galhos, repousando no chão, meu chão, ou no chãozinho particular dela, dentro do seu território nacional, o vasinho. Achei que o Tomilho fosse um falso comigo. Eu sempre ali, a observar o nascer de cada folhinha. E ele fez isso comigo. Não estava bem, nem me contara do acontecido. Ele passava mal em silêncio. O Tomate, pelo menos, sofria, minguava, e eu sabia que ele precisava de uma atenção especial. E eu dava e dou essa atenção especial imediatamente quando me é solicitada. Tomilho ingrato!
Depois, refletindo, lembro-me de sempre xingar o Tomate porque sua fragilidade poderia botar tudo a perder a qualquer instante, que ele deveria se garantir, aprender, sabe? E eu sempre o criticava. Mas eu jurava que as plantas não ouviam. Talvez o modo de ouvir seja outro, seja pela vibração que eu mando, no sabor que eu dou para a água que eu dou para o Tomate. O Tomilho ficou com medo e preferiu se esconder. Vai ver ainda por cima a culpa é minha.
E como se não bastasse, hoje, eu me levanto com o sol e vou dar água para meus amigos nos vasinhos deles. Depois, bebo eu uma boa golada de água bem refrescante ao lado do canteiro, fazendo ali uma aliança de confiança, amor, amizade e alegria. Os primeiros raios do sol atravessaram o meu copo que decompôs a luz em arco-íris, enfeitando da maneira mais mágica possível. Eu acho que eu seria capaz de ver uns elementais passeando por entre os cheiros.
Aí, olho para a Cebolinha. E o que está acontecendo com ela? Ela está perdendo seus cabelos!! E rápido! Depressa, já quase perdeu tudo!! E quando olho para o lado, o orégano todo destruído! Que tristeza... E uma aproximadinha a mais me foi possível para revelar o mistério do jardim suspenso: eram um bandinho de formigas vermelhas! Elas trabalhavam vermelhinhas da cor dos primeiros raios de sol vistos da janela do meu quarto. Vermelhas de tão fantásticas!! E elas eram bravas, valentes e violentas!! Joguei-lhe águas, assoprei, e depois fui procurar a trilha. Cadê a linha, cadê a fila? Não havia!! Isso não pode ser!! Um grupo de formigas vermelhas? Seriam as Formigas Amazonas? Elas sucumbiram ao meu poder soberano sobre as condições controláveis dos territórios que eu conquistei para os meus amigos temperos. Eu era o mais forte ali, mas porque elas estavam isoladas? Trabalham como equipe especializada em jardins suspensos. Não dependem do ninho, não dependem do serviço cotidiano de um formigueiro. Trabalham um período e são salariadas. Milhões e milhões de hipóteses.

Tudo isso enquanto você  não ligou.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Tem que ser macho para ser gay

Esses dias, vi um vídeo da radio uol que listou algumas das frases mais odiadas pelos gays, dessas do tipo “quem é o homem e quem é a mulher”, “não encontrou a mulher/o homem certa(o)” mimimi. Está bem escancarado que essas frases são de héteros para gays, quer dizer, são observações feitas dentro dos meios que não são gays. São modos que o hétero encontra para enganar-se. Ele acha que dizer essas coisas para um gay é aceitá-lo, que isso vai torna-lo socialmente mais saudável. Mas não é assim. Quando um hétero fala essas coisas para um gay, o que ele está fazendo é desacreditar o traço gay. Como não existem efeitos “reversores” de sexualidade, o hétero acaba só se queimando mesmo. Não conheço nenhuma história de um gay que ouviu que não tinha encontrado a mulher certa e depois saiu procurando por ela para a “cura”. Nunca mesmo. Nem nada parecido e nem similar. Quando o hétero fala isso, ele está reforçando o machismo de cada dia. Ele pensa que está sendo amigável, mas está sendo ofensivo, na verdade. Não está respeitando o espaço do outro. Isso não é novidade entre os gays, não é mesmo? Assim, falar dessas perguntas é falar do lado do hétero sobre o gay. O que eu gostei da reportagem que eu assisti é que se trata da linha de gay para gay. Aí, o pessoal solta a língua e fala umas coisas que seria muito difícil de se dizer para um hétero. Principalmente porque depois de dizer algo, o gay teria que explicar – e muito – para o hétero. Não porque este é burro, mas é que ser hétero é uma condição tão favorecida na sociedade, que o preço que se paga por estar na normatividade é a cegueira. A maior parte dos héteros não consegue enxergar como isso tudo pode ser só a reafirmação do heterozismo, o desrespeito ao outro, e o pior: mostra como esse hétero está cego, trancadinho no mundo dele, que nem fica com vergonha de falar uma coisa dessas. Ele nem percebe o quão hipócrita ele se torna vestindo sua boca com tais pensares. E então, caio a pensar novamente no mesmo ponto que venho pensando desde sei-lá-quando. Quando alguém me fala uma dessas frases, a tal da “Tem que ser muito macho para fazer o que vocês fazem”. Eu penso, tem que ser muito homem, não macho. Mas por que é difícil ser gay? Será que é difícil encontrar outro gay? Será que o pinto cai no chão depois do sexo? Será que isso e aquilo? Será que um mundo de proposições bizarras? A minha resposta a isso é: Se é difícil ser gay, a culpa não é do gay, mas do macho. Se o gay tem que ter muita coragem para ser gay socialmente é porque o macho torna o simples sexo em um tabu tão grande que é capaz de matar por isso. Se é difícil ser gay, temos que agradecer ao macho. E quando esse tipo de frase vem da boca de um macho, isso me soa mais como uma ameaça, do tipo “eu estou no comando e mandei você ficar trancado no armário, e você saiu porquê? Você está me desafiando?”
 Então, termino este texto com um agradecimento ao macho que aplica em nós o machismo de cada dia. Obrigado, a vida sem você seria só rosa, não teria esses tons de vermelho sangue que escorre dos seus olhos quando olha para mim e que escorre do meu corpo quando você me agride por eu ser não importa o quê independentemente de você. Obrigado por ofender-se com a minha existência e fazer a minha vida muito difícil só porque eu não sou igual a você. Tem que ser macho para ser gay? Não, tem que ser gay para ser gay. Ser macho é simples, fácil, seguro, barato. É claro, é um mundo feito por machos, de macho para macho. O mundo para os gays é como um abridor de latas para canhotos. O canhoto até consegue abrir a lata, mas precisou se adaptar bruscamente toda a sua vida para abrir uma simples porra de uma lata. E se abrir a lata é já uma aventura na mão do canhoto, abrir o armário pelo lado de dentro é pular na cova dos leões.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Globo paga de bonita depois do Beijo Gay

Eis o comunicado da Globo sobre o beijo de Niko e Felix


 “Toda cena de novela é consequência da história, responde a uma necessidade dramatúrgica e reflete o momento da sociedade. O beijo entre Felix e Niko selou uma relação que foi construída com muito carinho pelos dois personagens. Foi, portanto, o desdobramento dramatúrgico natural dessa trama. A pertinência desse desfecho foi construída com muita sensibilidade pelo autor, diretor e atores e assim foi percebida pelo público. É importante lembrar que o relacionamento homossexual sempre esteve presente nas nossas novelas e séries de maneira constante, responsável e natural. A cena esteve de acordo com essa premissa e com a relevância para a história”.

Vamos começar?
“Toda cena de novela é consequência da história, responde a uma necessidade dramatúrgica e reflete o momento da sociedade.” – Pera lá, cara pálida. A necessidade dramatúrgica o escambau! Leia-se o medo de perder tantos telespectadores. O momento da sociedade de ver o beijo gay está sobressalente na boca do povo e na mídia já faz alguns anos. Não venham querer se colocar como “dentro do tempo”, ou “somos super atuais”, ou “olha só que novidade vamos propor”! De fato, o beijo em rede nacional no horário nobre foi uma novidade, mas não façam parecer que foi ontem que o assunto nasceu, heim?
“O beijo entre Felix e Niko selou uma relação que foi construída com muito carinho pelos dois personagens.” – É delicado falar disso, né? Estamos num momento – pelo menos para a Globo – de construir uma base social de aceitação do gay. O beijo foi feito dentro de muito carinho. Agora, tem muito personagem na novela que beijou e transou horrores por puro erotismo. O gay não pode só curtir, então? O que me parece é que a Globo quer promover a aceitação do gay com base nos contos de fada da Disney. Não, globo, não faça isso!! O beijo gay é libertação e os contos de fada é resignação!! Só falta agora colocar o gay esperando outro gay num cavalo branco e tal. NÃO!
“Foi, portanto, o desdobramento dramatúrgico natural dessa trama.” – Natural seria se tivesse aparecido um beijo do Eron e do Niko, que foram o casal gay da novela por muito mais tempo do que a relação do Felix e do Niko. Desdobramento natural o carai, mano! Então o Eron e o Niko não se amavam? É isso???
“A pertinência desse desfecho foi construída com muita sensibilidade pelo autor, diretor e atores e assim foi percebida pelo público.” – Pertinência? Foi o capítulo mais longo do mundo, e vários casais se casaram durante a novela. Porque não casaram o Niko e o Felix também, então?? Porque não fizeram o beijo na frente do juiz de paz? Eu sei, calma, um passo de cada vez, mas, Globo, se liga, fia! Vem sambar agora de boazuda? Não dá, né?


Cansei!! Vou estudar ;) A globo querendo sair de heroi, né? Tenho muito medo!!

domingo, 5 de janeiro de 2014

Quem é você na fila do mercado?

O ano de 2013 terminou, dando espaço a um ano tão repleto de coisas a serem feitas, e ainda acumulando tudo aquilo que deveria ter sido feito no ano passado e ficou para esse ano. De qualquer forma, eu não estava fazendo nada disso, estava no mercado, comprando os ingredientes para preparar um bolo. Estava dando um bolo nos artigos, nos fichamentos. Um bolo igual ao que estou dando agora.

                E no mercado chique estava escolhendo quais os produtos da receita eu deveria comprar, pois havia algo já em casa. O mercado semi lotado. Nem muita gente, nem tão vazio. A não ser pela variedade de produtos, que de chique não tinha nada. Apenas uma ou duas marcas daquilo que tinha. Do que não tinha, não tinha nada. Não tinha mesmo. Mas era chique, mulheres quase senhoras empurravam seus carrinhos com bolsa a tira colo, colar de contas. Quando se tornarem senhoras de verdade, eu as verei de tallieur e colar de pérolas, mas por ora bastavam aquelas roupas que se fossem de uma cor só seriam básicas, mas as estampas sobriamente coloridas desenhavam na cabeça dos outros clientes: eu sou chique.
                Mas no mercado chique não tinha chocolate. Eu não falo achocolatado. Falo chocolate em pó, vulgo do padre. Nestlé. É o que tem de mais chique dentre as marcas nacionais. Na verdade, esse tipo de produto não apresenta opções importadas nas prateleiras de um mercado numa cidade como essa. Enfim, não tinha o chocolate e fomos no mercado da esquina, que era um mercado mais popular, menos glamuroso.
                As pessoas que andavam pelo corredor do segundo mercado eram mais mistas, mais coloridas. Via-se de todo tipo de comportamento. As sessões nas gôndolas apresentavam outra ordem, uma que eu não estava habituado. Enquanto eu procurava o tal chocolate, fui batendo o olho nos preços dos produtos que eu comprara há pouco e verificando que alguns preços eram agressivamente mais baratos e outros eram a mesma coisa. Odiei-me por comprar uma lata de tomates pelados, que é chique, por dois reais a mais do que estava sendo vendido no mercado não chique.
                Quando fiz a curva e quase entrei em outro corredor, um homem peludo com a camisa de botões abertos até o começo do estômago lutava para não derrubar o carrinho. Quando ele recuperara a estabilidade, olhou para mim com seu hálito alcólico e disse com o olhar feliz: nóis capota mais num cai!. Eu ri meu sorriso amarelo que dizia não querer contato, mas ele ignorava meus claros sinais.
                - Tarra lá e
m casa, e a muié falô preu vim no mercado. Aí eu peguei o papel e a caneta e ela foi falando a lista. Eu já tinha bebido umas pinga, rapai, e ni qui eu cheguei aqui num tô intendeno minha letra... hahahahah. Agora quero só vê na hora que eu chegá em casa que é que ela vai falá.
                Meu sorriso amarelo se desfez e eu retribui com um riso mais sincero. Conversei com ele algumas frases e retomei minha busca pelo chocolate, enquanto isso refletia. Ninguém no outro mercado olhou para minha cara. E o senhor bêbado era o mais simpático do universo com seus cabelos soltos pelo ombro de um jeito que nem um neutrox inteiro seria capaz de desemaranhar. Pensei em algumas pessoas que eu conhecia, que tinham o perfil de cliente do mercado não chique. Enquadrei vários ali com meu julgamento que me colocava em lugar superior a eles. Eu não era superior, eu era inferior e metido. E também arrogante. Foi o bêbado que me disse sem saber. Toda a simpatia dele esfregava na minha cara minha prepotência montada em nada.
                Pensei em quem são as pessoas na fila do mercado. Quem somos nós quando vamos ao mercado? Peguei o produto e saí. Paguei, entrei no carro e parti. Pouco antes de chegar em casa, procurei na minha memória uma situação em que tivesse procurado fazer contato com outras pessoas no mercado. E ali estava meu julgamento de mim mesmo. Eu trocava receitas nas sessões de hortifrúti com aquelas mulheres com cara de mãe que fazem de tudo para que o marido e os filhos comessem um pouco mais de vegetais. Eu era mãe no mercado. Em casa, os vegetais estragavam, mas no mercado eu era mãe. Uma mãe se sentindo açoitada por ter sido interpelada por um desconhecido que nem reconhecia minha situação de mãe. Não se fala como ele falou com uma mãe.

Eu não quero mais ser mãe. 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Máscara no chão, eu segui meu caminho sem olhar para trás

Eu estava lá, esperando minha carona no fim da noite do meu trabalho. Para facilitar, eu espero na esquina, o que evita de fazer o percurso de carro por mais 4 quarteirões, dada a disposição das mãos das ruas e o trajeto até meu destino. Estava lá eu cansado e com o dinheiro na carteira para pagar meu terapeuta. Eu, a noite, os arbustos, todos silenciosos naquela esquina sem movimento algum. Mas não temia, porque não era a primeira que eu ficara ali e nunca nada de diferente acontecera nas vezes anteriores. Então, depois de um dia de folga de crises de ansiedade, eu esperava com a sensação de bem-estar e de autocontrole. Tudo estava indo bem.
 
Foi então que vi se aproximando uma figura. Um rapaz aparentemente mais novo do que eu. De calças jeans, camiseta e boné. Sua pele, entre o moreno e o mulato. Tinha o olhar cansado e um pouco perdido, e também vasos que pulsavam em seus glóbulos, fazendo de sua aparição uma ponta de início dos meus medos. Tive medo de ser assaltado. Nem me questionei se fosse pela cor de sua pele, pelo jeito que ele dispunha seus pés em seus passos perdidos, lentos como que com cuidado, ou perdidos, como que sem rumo. Olhava para os lados. Não sabia dizer o motivo, mas em minha cabeça ele procurava por testemunhas que preferia evitar e cometer seu delito de modo mais tranquilo.
 
Aproximou-se de mim e pediu um dinheiro. Tinha o ar triste e queria comer alguma coisa e beber um algo também. Pediu-me gentilmente, com um palavreado de gírias que passaram desconhecidas por minha limitada experiência social. Tinha medo de não dar um dinheiro e despertar nele sua ira, que o impulsionaria ao roubo. Tinha medo de dar o dinheiro e ser roubado quando pusesse a carteira à vista. Tinha pena de vê-lo tão desorientado. Abri a carteira e dei-lhe uma moeda, assim poupava de mostrar dentro dela algumas notas, já destinadas ao terapeuta.
 
Como que por gratidão, o rapaz desembestou a contar sua história para mim. Vinha do Paraná, coincidentemente de uma cidade perto de Maringá, de onde eu vinha também. Então, ficou estabelecido o primeiro traço de identificação. Cantei prontamente essa pedra, achando que pudesse ser um bom argumento para ele não me roubar. Mas no fundo mesmo, não parecia ameaçador, não fosse todo o contexto em que tudo se deu. Disse que viera há duas semanas com a namorada e que a dita o pusera para fora, restando-lhe apenas vagar pelas ruas dia e noite. Procurou a polícia, o conselho tutelar, isso e aquilo, para tentar conseguir o dinheiro da passagem de volta para sua terra natal. Tentativas todas frustradas. Restava-lhe mesmo vagar aqui e acolá. Chegou mesmo a me perguntar, depois de descrevê-la, se eu tinha visto sua ex andando pelas redondezas.
 
Foi quando ouvi atrás de mim uns outros passos. Minha mente advertiu: emboscada! Estava perdido naquele momento. Mergulhado no medo, não sabia como reagir. O segundo elemento era um quase negro, vestindo xortes e camiseta. Tinha consigo um pano, tão surrado quanto suas roupas. Esse claramente estava na rua há mais tempo que o primeiro. E estava ali, logo atrás de mim, aproximando-se. Não podia conter meu medo. Logo, desvirei e comecei a olhar para ambos, ora um, ora outro, até que o segundo chegou e nos cumprimentou. Pensei: se conhecem. É uma emboscada, certamente. E o segundo começou a conversar conosco como se quem não quisesse nada. Cumprimentou, perguntou como vamos, apertou nossas mãos e se pôs a conversar. E no meio da conversa, que eu não conseguia acompanhar muito bem dado o pânico que estava sentindo, ele contou sua história também. Aparentemente desinteressado, o primeiro disse que iria se sentar, que estava cansado. Como eu me reposicionara para não perder nem um nem outro de vista, acabei ficando de costas para a rua, e o primeiro foi bem na direção que eu não poderia avistá-lo. Disfarçando meu medo, virei-me e fiquei novamente com o olho pregado nos dois. Éramos ali nós três: dois que moravam na rua, um há mais tempo que o outro, e eu, que tinha ondes morar e comida quentinha em casa, me esperando.
 
O segundo perguntou meu nome, e eu respondi. Ele também dissera o seu: Charles. Contou-me que vinha de uma cidade do paraná. Usei a mesma estratégia para desmotivar o crime. Eu estava petrificado de medo. Depois que Charles contou sua história, e que eu fiquei demonstrando interesse, fazendo mil e uma perguntas para ganhar tempo de minha carona chegar, o primeiro levantou-se e veio em nossa direção. É agora, pensei. Chegou o momento. Não sabia como reagir, nem mesmo conseguia mais manter a aparência tranquila. Eu estava transtornado e estava visível nos meus olhos. Presa fácil, que não saberia nem para que lado correr. O rapaz reveio e disse que iria na praça, perto do trailer de lanches, ver se descolava mais algum para comer alguma coisa. Charles, mais que prontamente, enfiou a mão no bolso e disse: cara, eu não tenho muito para ajudar. Estava guardando para juntar e tomar uma pinga, mas tô vendo que hoje não vai rolar. Tirou do bolso uma moeda de vinte e cinco centavos que entregou na mão do outro rapaz. O rapaz mais solidário do que eu. Pelo menos mil vezes mais. Senti-me um lixo. Humilhado. Horrível, mas o medo lá, ainda presente em cada poro do meu corpo.
 
Partido o primeiro para a praça, Charles me contou que tinha um cachorro e que não era fácil conseguir comida pra ele e para o amigo animal. Entre médio e pequeno, de cor amarelada, ele disse que Amarelo era sua fiel companhia, e que mesmo sendo difícil ele se mantinha com o cão, porque um cuidava do outro, e nas noites mais frias, um também aquecia o outro. Investiguei o quanto pude a história do morador de rua com o seu cão, até que a carona chegou. Carro estacionado, motorista olhando tudo e achando estranho, eu me despedi e parti para ocupar meu lugar de copiloto, deixando Charles que nem tinha para onde ir plantado ali naquela esquina vazia. Ele me pediu um dinheiro também, pois que também tinha fome e sede. Abri a carteira, dei a ele uma moeda de um real também. Não tinha mais moedas, apenas notas destinadas ao terapeuta, que se eu pensasse bem, poderia ter dado uns dez reais ao rapaz que não me fariam falta ao ponto de me prejudicar. E o rapaz com fome.
 
Entrei no carro e partimos. Charles para trás, e eu transtornado de medo, fiquei ali naquele banco de carro recapitulando as duas histórias que acabara de ouvir. Eu sofro de ansiedade, e tenho todo o respaldo necessário para me tratar. Senti a injustiça social que eles sofriam e senti também que agora eu era parte dessa sociedade que os discriminava. Ninguém me assaltou.
 
Talvez o primeiro tivesse me assaltado se o segundo não tivesse aparecido. Talvez Charles apareça somente para me proteger, porque viu a atitude suspeita. Talvez os dois só quisessem ajuda e nunca pensaram em me assaltar naquela esquina. De qualquer forma, ainda que por estratégia de distração, dei a eles um pouco de atenção e ouvi suas tristes histórias. E eu os julgara durante os longos 12 minutos que passei na companhia deles. Quem era eu ao lado de Charles, que nem para si tinha e ainda ajudou o primeiro?, que cuida de um cachorro de rua?, que veio ali e, ainda que não fosse sua intenção, protegeu-me?, que tudo isso e eu, mesquinho, ali parado tremendo de cima da minha empáfia favorecida.
 
Existe muito lixo nas ruas da cidade. Mas naquela noite, eu vi também que existe muito lixo dentro das casas, bem confortáveis, com comida quentinha. É assim que eu me senti depois da experiência. Um lixo e nada mais. Uma única experiência mostrou que meu discurso de esquerda, de favorecimento dos pobres, de não ao preconceito e à exclusão social, de amar a tudo e a todos, tudo ali foi para o esgoto naquela noite. Eu não me sentia mais nada daquilo. Apenas descobri o lixo humano que eu era. Lixo com dinheiro no bolso e coração de pedra de medo e de falta de compaixão.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Dia do Homem (pra quê mesmo?)



O dia do homem é todo dia, numa sociedade de base machista e patriarcal, como é no Brasil e na maioria das sociedades letradas. Qual o sentido de celebrar um dia para o homem? Todas as ações do cotidiano das pessoas já reforçam a supremacia masculina perante a feminina. A data foi recentemente criada, posterior ao Dia da Mulher. Parece-me mais uma contra-palavra do que uma data com intensões de promover a igualdade entre os sexos.
Se pensarmos na lógica do Orgulho Gay, o que temos é um dia que enfatiza que o gay também tem o seu lugar na sociedade. Um lugar que não pode ser exercido graças ao papel hiper ativo dos homens. Como alguém disse e eu gostei, não é um dia para celebrar o fato de ser gay, mas de reivindicações sociais em prol dessa minoria social. É estranho se houvesse o dia do Orgulho Hétero. Não é vergonhoso ser hétero em nossa sociedade. O grupo não precisa de reforços, não precisa sair do armário, não precisa provar que é gente, não precisa nada disso. Os héteros existem e pronto. Eles governam a vida social ainda. Não precisam de políticas de auto-afirmação.
O Dia do Homem pode ser pensado na mesma direção. Por que precisamos de um dia que reforce o caráter masculino se já vivemos em uma sociedade machista, patriarcal? No outro lado da moeda, temos o Dia da Mulher, que celebra a luta da mulher pelo seu reconhecimento na sociedade e seu espaço nela. Mulher é burra, ganha menos, é fraca, é incompetente, fofoqueira, fútil etc. Todos esses aspectos da mulher são posições criadas por homens e adotadas inclusive por milhares de mulheres. Também, você nasce numa sociedade que te diz e te mostra isso o tempo todo, como discordar? Você nasce numa sociedade que diz isso milhões de anos antes de você nascer, como discordar? Existe uma proposta coerente para o dia da mulher, que não se replica na proposta do dia do homem.
Numa pesquisa sem muita profundidade achei isso:

A diretora da Secretaria de Mulheres e Cultura de Paz da UNESCO, Ingeborg Breines, disse que a criação da data é "uma excelente idéia para equilibrar os gêneros".1 Os objetivos principais do Dia Internacional do Homem é melhorar a saúde dos homens (especialmente dos mais jovens), melhorar a relação entre gêneros, promover a igualdade entre gêneros e destacar papéis positivos de homens. É uma ocasião em que homens se reúnem para combater o sexismo e, ao mesmo tempo, celebrar suas conquistas e contribuições na comunidade, na famílias e no casamento, e na criação dos filhos (wikipedia).

Como se quer combater o sexismo fazendo um dia para glorificar o grupo que já tem a força social maior? Como se pretende equilibrar os gêneros se o homem já é o lado mais pesado da balança? Não deveríamos colocar mais peso nos outros pratos para igualar de verdade? Fora a saúde do homem, o resto da argumentação está em torno da questão do gênero. Isso reforça a ideia que coloquei no começo do texto. Celebrar as conquistas e contribuições na sociedade feitas por homens? É claro que foi feita muita coisa por eles, afinal, eles coibiram as mulheres de exercerem suas próprias vidas durante séculos! Alguém tinha que fazer o trabalho, não é?

Na mesma página, temos alguns objetivos, que eu destaco um: “Destacar a discriminação profissional contra os homens nas áreas de serviços sociais, nas atitudes e expectativas sociais e no direito”. Coitados, não? Não consigo aceitar o argumento, a não ser se for para refletir sobre o que eles fazem com as mulheres. Um tipo de “sentiu na pele, né?”.

No Brasil Escola, eu li:

O artigo 1° da Declaração Universal de Direitos Humanos relata:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”
O Dia do Homem tem igual importância ao Dia da Mulher, pois ambos têm o seu espaço na sociedade e buscam objetivos semelhantes como a promoção da vida, o bem-estar da família, o cuidado com o meio ambiente e a busca pela saúde física e mental.

Bem, já discordei da necessidade dessa data principalmente no que diz respeito ao gênero, mas aqui ainda existem outros argumentos, como a promoção da VIDA, BEM-ESTAR da FAMÍLIA, SAÚDE FÍSICA E MENTAL. Se pensarmos que os conceitos em caixa alta já são elaborados por homens, é lógico pensar que tais conceitos os confortam bem. É tudo uma construção de homem, feita de homem para homem, e as minorias que se encaixem ou morram. Questão de gênero não é questão de saúde, de bem estar, de desmatamento. Tudo isso é questão social. Não é questão discriminatória dos pobres homens. Ser homem não tem nada a ver com reforçar esses aspectos, no meu ponto de vista.

Na machista G1, filhinha da Globo, tem uma matéria sobre o dia fatídico. Uma foto de uma família e a seguinte legenda: “Para a Professora Nayla Ferreira, no dia do homem, o homenageado tem que cumprir com seu papel de chefe de família (Foto: Marcos Dantas / G1 AM).” É isso, então. Ela não entendeu a razão pelo dia do homem porque ela pensa como um homem. E ela pensa assim porque foram os próprios homens que a ensinaram a pensar assim. Ela, professora, como dizem certos políticos, precisa ser bem casada, porque seu salário não dá para bancar o provedor da família. E a mulher? Não pode ser chefe?

Bom, esse assunto dá pano para manga. Eu vou parando por aqui. Eu sou homem, sou gay, sou maioria às vezes, e às vezes minoria. Não quero esse dia para mim. Eu passo, dispenso. Quem for homem de verdade e souber o que é ser homem de verdade fora da posição machista que comemore. Mas eu duvido que haja. O dia vai mesmo ser celebrado como qualquer domingo: um bando de machos jogando futebol e bebendo cerveja, enquanto as fêmeas cuidam das crias, da limpeza do ninho, da organização da toca. Somos animais, viva o dia do homem.

#Eike pobreza de espírito

Nos últimos tempos, tenho visto noticiado que a fortuna de Eike Batista reduziu consideravelmente de tamanho. No entanto, o cara continua bilionário. Uma pessoa que já teve 27 bilhões de dólares e agora possui apenas poucos bilhões não é um pobre. Bem, eu não conheço a história do empresário, nem sei quais são suas empresas. Leio sempre em manchetes que seu patrimônio está cada vez mais diminuindo e li agora que suas empresas devem 23 bilhões. E então dizem “Eike empobreceu”. Não existem pobres de 5 bilhões de dólares. Não sobraram ‘apenas’ 5 bilhões.
De qualquer forma, não estou nestas linhas para falar do afortunado sob infortúnios. Quero apenas registrar a reação que tenho visto das pessoas. Vejo muita gente feliz com o ‘empobrecimento’ de Eike como se fosse um trunfo, quase que uma vingança particular. Ora, estamos no sistema capitalista. Uns em cima e outros embaixo. Não tenho conhecimento de ninguém que ocupará ao seu trono que esteja ao meu redor, ou ao redor das pessoas que estão ao meu redor, ou ao redor das pessoas que estão ao redor das pessoas que estão ao meu redor, ou ao redor das pessoas que estão ao redor das pessoas... chega, né?
Mas porque celebrar a “pobreza” de Eike? Fazer humor com os fatos da vida é um traço do ser humano e, digamos, uma característica inerente ao brasileiro. É comum vermos tudo, eu disse TUDO virar piadinhas. Mas no fundo, eu vejo que essas piadinhas com o empobrecimento de Eike está cheio de um algo que eu não consigo imaginar o que é. Pessoas brincam na internet com situações típicas das classes menos favorecidas. Coisas que seriam normais, ou ainda que são vergonhosas, são colocadas na rotina do empresário para os internautas se divirtam. É engraçado? Ok, algumas podem ser. Mas porque tanta gente celebra isso? Quem, de fato, está ganhando com isso? Bem, na história com esse Eike aí, eu sei que tem um bom tanto de coisas que podem estar erradas com a política nacional. De qualquer forma, nem todos por aí politizados. Eu, por exemplo, sou muito pouco. Mas estou aí, lendo a tragédia alheia, e lendo o gozo alheio com a tragédia alheia.
Mas por que será que as pessoas se importam tanto? Vou ter que pesquisar muito para entender como o império eikiano chega até mim, como ele me influencia direta e indiretamente. Mas não acredito que eu chegaria ao ponto de me divertir construindo frases que colocam o Eike em situações de pobre. Fiquei pensando se é inveja. Sério mesmo. Será que não é inveja? Daquelas bem breguinhas de vilão de novela mexicana, do tipo “se eu não tenho, fico feliz que você não tenha”. Eu, que não tenho patrimônio algum, penso que se eu perder a mesma porcentagem que ele, eu sim estou lascado. Não ele. Eu e as pessoas ao meu redor, e as ao redor das que estão ao meu redor.

Bem, termino esse post com essas duas dúvidas centrais: o que significa de fato a pobreza de Eike Batista na minha vida, e por que as pessoas escarnam tanto essa situação? Será que só porque eu não entendo posso chamar aqueles que entendem de invejosos, ou a reação não é cabível mesmo? Não sei de nada. Sei da minha vida e dos meus problemas. E é neles que eu foco minha energia e minhas piadas.