sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Máscara no chão, eu segui meu caminho sem olhar para trás

Eu estava lá, esperando minha carona no fim da noite do meu trabalho. Para facilitar, eu espero na esquina, o que evita de fazer o percurso de carro por mais 4 quarteirões, dada a disposição das mãos das ruas e o trajeto até meu destino. Estava lá eu cansado e com o dinheiro na carteira para pagar meu terapeuta. Eu, a noite, os arbustos, todos silenciosos naquela esquina sem movimento algum. Mas não temia, porque não era a primeira que eu ficara ali e nunca nada de diferente acontecera nas vezes anteriores. Então, depois de um dia de folga de crises de ansiedade, eu esperava com a sensação de bem-estar e de autocontrole. Tudo estava indo bem.
 
Foi então que vi se aproximando uma figura. Um rapaz aparentemente mais novo do que eu. De calças jeans, camiseta e boné. Sua pele, entre o moreno e o mulato. Tinha o olhar cansado e um pouco perdido, e também vasos que pulsavam em seus glóbulos, fazendo de sua aparição uma ponta de início dos meus medos. Tive medo de ser assaltado. Nem me questionei se fosse pela cor de sua pele, pelo jeito que ele dispunha seus pés em seus passos perdidos, lentos como que com cuidado, ou perdidos, como que sem rumo. Olhava para os lados. Não sabia dizer o motivo, mas em minha cabeça ele procurava por testemunhas que preferia evitar e cometer seu delito de modo mais tranquilo.
 
Aproximou-se de mim e pediu um dinheiro. Tinha o ar triste e queria comer alguma coisa e beber um algo também. Pediu-me gentilmente, com um palavreado de gírias que passaram desconhecidas por minha limitada experiência social. Tinha medo de não dar um dinheiro e despertar nele sua ira, que o impulsionaria ao roubo. Tinha medo de dar o dinheiro e ser roubado quando pusesse a carteira à vista. Tinha pena de vê-lo tão desorientado. Abri a carteira e dei-lhe uma moeda, assim poupava de mostrar dentro dela algumas notas, já destinadas ao terapeuta.
 
Como que por gratidão, o rapaz desembestou a contar sua história para mim. Vinha do Paraná, coincidentemente de uma cidade perto de Maringá, de onde eu vinha também. Então, ficou estabelecido o primeiro traço de identificação. Cantei prontamente essa pedra, achando que pudesse ser um bom argumento para ele não me roubar. Mas no fundo mesmo, não parecia ameaçador, não fosse todo o contexto em que tudo se deu. Disse que viera há duas semanas com a namorada e que a dita o pusera para fora, restando-lhe apenas vagar pelas ruas dia e noite. Procurou a polícia, o conselho tutelar, isso e aquilo, para tentar conseguir o dinheiro da passagem de volta para sua terra natal. Tentativas todas frustradas. Restava-lhe mesmo vagar aqui e acolá. Chegou mesmo a me perguntar, depois de descrevê-la, se eu tinha visto sua ex andando pelas redondezas.
 
Foi quando ouvi atrás de mim uns outros passos. Minha mente advertiu: emboscada! Estava perdido naquele momento. Mergulhado no medo, não sabia como reagir. O segundo elemento era um quase negro, vestindo xortes e camiseta. Tinha consigo um pano, tão surrado quanto suas roupas. Esse claramente estava na rua há mais tempo que o primeiro. E estava ali, logo atrás de mim, aproximando-se. Não podia conter meu medo. Logo, desvirei e comecei a olhar para ambos, ora um, ora outro, até que o segundo chegou e nos cumprimentou. Pensei: se conhecem. É uma emboscada, certamente. E o segundo começou a conversar conosco como se quem não quisesse nada. Cumprimentou, perguntou como vamos, apertou nossas mãos e se pôs a conversar. E no meio da conversa, que eu não conseguia acompanhar muito bem dado o pânico que estava sentindo, ele contou sua história também. Aparentemente desinteressado, o primeiro disse que iria se sentar, que estava cansado. Como eu me reposicionara para não perder nem um nem outro de vista, acabei ficando de costas para a rua, e o primeiro foi bem na direção que eu não poderia avistá-lo. Disfarçando meu medo, virei-me e fiquei novamente com o olho pregado nos dois. Éramos ali nós três: dois que moravam na rua, um há mais tempo que o outro, e eu, que tinha ondes morar e comida quentinha em casa, me esperando.
 
O segundo perguntou meu nome, e eu respondi. Ele também dissera o seu: Charles. Contou-me que vinha de uma cidade do paraná. Usei a mesma estratégia para desmotivar o crime. Eu estava petrificado de medo. Depois que Charles contou sua história, e que eu fiquei demonstrando interesse, fazendo mil e uma perguntas para ganhar tempo de minha carona chegar, o primeiro levantou-se e veio em nossa direção. É agora, pensei. Chegou o momento. Não sabia como reagir, nem mesmo conseguia mais manter a aparência tranquila. Eu estava transtornado e estava visível nos meus olhos. Presa fácil, que não saberia nem para que lado correr. O rapaz reveio e disse que iria na praça, perto do trailer de lanches, ver se descolava mais algum para comer alguma coisa. Charles, mais que prontamente, enfiou a mão no bolso e disse: cara, eu não tenho muito para ajudar. Estava guardando para juntar e tomar uma pinga, mas tô vendo que hoje não vai rolar. Tirou do bolso uma moeda de vinte e cinco centavos que entregou na mão do outro rapaz. O rapaz mais solidário do que eu. Pelo menos mil vezes mais. Senti-me um lixo. Humilhado. Horrível, mas o medo lá, ainda presente em cada poro do meu corpo.
 
Partido o primeiro para a praça, Charles me contou que tinha um cachorro e que não era fácil conseguir comida pra ele e para o amigo animal. Entre médio e pequeno, de cor amarelada, ele disse que Amarelo era sua fiel companhia, e que mesmo sendo difícil ele se mantinha com o cão, porque um cuidava do outro, e nas noites mais frias, um também aquecia o outro. Investiguei o quanto pude a história do morador de rua com o seu cão, até que a carona chegou. Carro estacionado, motorista olhando tudo e achando estranho, eu me despedi e parti para ocupar meu lugar de copiloto, deixando Charles que nem tinha para onde ir plantado ali naquela esquina vazia. Ele me pediu um dinheiro também, pois que também tinha fome e sede. Abri a carteira, dei a ele uma moeda de um real também. Não tinha mais moedas, apenas notas destinadas ao terapeuta, que se eu pensasse bem, poderia ter dado uns dez reais ao rapaz que não me fariam falta ao ponto de me prejudicar. E o rapaz com fome.
 
Entrei no carro e partimos. Charles para trás, e eu transtornado de medo, fiquei ali naquele banco de carro recapitulando as duas histórias que acabara de ouvir. Eu sofro de ansiedade, e tenho todo o respaldo necessário para me tratar. Senti a injustiça social que eles sofriam e senti também que agora eu era parte dessa sociedade que os discriminava. Ninguém me assaltou.
 
Talvez o primeiro tivesse me assaltado se o segundo não tivesse aparecido. Talvez Charles apareça somente para me proteger, porque viu a atitude suspeita. Talvez os dois só quisessem ajuda e nunca pensaram em me assaltar naquela esquina. De qualquer forma, ainda que por estratégia de distração, dei a eles um pouco de atenção e ouvi suas tristes histórias. E eu os julgara durante os longos 12 minutos que passei na companhia deles. Quem era eu ao lado de Charles, que nem para si tinha e ainda ajudou o primeiro?, que cuida de um cachorro de rua?, que veio ali e, ainda que não fosse sua intenção, protegeu-me?, que tudo isso e eu, mesquinho, ali parado tremendo de cima da minha empáfia favorecida.
 
Existe muito lixo nas ruas da cidade. Mas naquela noite, eu vi também que existe muito lixo dentro das casas, bem confortáveis, com comida quentinha. É assim que eu me senti depois da experiência. Um lixo e nada mais. Uma única experiência mostrou que meu discurso de esquerda, de favorecimento dos pobres, de não ao preconceito e à exclusão social, de amar a tudo e a todos, tudo ali foi para o esgoto naquela noite. Eu não me sentia mais nada daquilo. Apenas descobri o lixo humano que eu era. Lixo com dinheiro no bolso e coração de pedra de medo e de falta de compaixão.

2 comentários:

  1. quantas e quantas vezes já me senti assim... como o compreendo...

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  2. quantas e quantas vezes já me senti assim... como o compreendo...

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