Lembrar-se dos sonhos tem sido
tão raro nos últimos dias... não por falta de produção onírica, mas talvez por
não ter mais a mesma capacidade de me recordar das coisas malucas que nos
ocorre durante esses momentos que a cabeça finge que para de funcionar. Bem,
vamos ao sonho desta noite. O sonho interrompido. Em geral, não temos títulos
para sonhos, mas o sonho é meu e eu coloco um para ficar mais especificamente
um texto transfigurado de um sonho.
O CARA QUE VOA
Ana Flávia é uma linda mulher,
negra, respira afrobrasilidade. Não existe sorriso na terra que passe mais boa
sensação que o dela. Não existe alguém para se estar do lado sem sentir-se num
sonho. Pois então que em sonho ela me chamou para uma festa afro-brasileira.
Eu, certamente, aceitei de pronto. A festa estava lá, era pensar que ela
existia e já estávamos nela.
Minha amiga tinha desaparecido
temporariamente, afinal, minha mente produzira a festa quase que
instantaneamente com o aceite. Assim, ela não teve nem tempo de se aprontar. E
não muita gente preenchia o espaço da festa. Um cômodo para ser mais exato. Um
cômodo não muito grande e uma música mais batucada. Banquinhos pequenos e
baixos espalhados por todos os lados, mas ninguém tomava o acento. Todos
ficavam dançando para lá e para cá.
Aos poucos, fui me dando conta
que as pessoas iam ficando de roupa branca, tudo foi ficando branco. Até que
chegou Ana Flávia. Seu corpo nu, coberto por uma espécie de tinta que dava em
sua pele uma textura de um pó sobre ela toda. Menos os cabelos. Esses, negros
do contraste, reluziam mais que o branco. Observei que o pálido apagava seu
brilho. Ela veio, não olhou e não falou com ninguém. Pôs-se no meio do cômodo
numa posição e começou a fazer uns movimentos que me fizeram crer que eu estava
diante de uma manifestação artística. Ela começava sua coreografia com um ritmo
no corpo que eu não conhecia. Depois de longos minutos, eu me dei conta que eu
era o único que olhava para ela, impressionado. Todos ainda simplesmente
dançavam.
Fiquei como que hipnotizado pela
linda cena que eu via. Ela olhou para mim com uma frase nos olhos: vem dançar.
Era como se fosse uma ordem para o meu corpo. Aos poucos fui abaixando também,
contorcia-me como se uma serpente se manifestasse dentro de mim aos poucos. Nem
cheguei a me abaixar completamente, já tinha subido de novo e já estava entregue
ao ritmo dos tambores. Dei-me conta de que eu também usava branco. Eu não me
lembro de ter me trocado. Mas é preciso retomar sempre que é um sonho. Em
geral, esses que são mais reais precisam desse toque de “pé no chão”.
O ritmo dos tambores já tinha
tomado conta de mim e de todos na festa. Mas tudo foi interrompido por um
gatuno. Um ladrão, que simplesmente saiu correndo. Eu não vi o que ele roubara,
mas todos correram atrás dele dizendo: PEGA!!! Eu dei uns passos andando mais
rápido, junto com a multidão. Eu queria fazer algo de bem para aquele lugar que
me tratava a alma tão bem. E num passo largo alcei meu voo onírico. Ah, como me
fez bem tomar umas lições de voo sonhos atrás. Voei por entre os galhos de árvore e entendi
que estávamos num sítio, ou numa chácara. Estávamos atrás do ladrão. E eu,
pelos ares, cheguei primeiro que todos. Era só captura-lo.
Mas algo na fala dele me
surpreendeu. Algo que eu não esperava. Eu fora reconhecido. Ele apontou para
mim e disse como se tivesse uma plateia para ouvi-lo: Olha o cara que voa de
novo! Fiquei com medo de ser reconhecido. Lembro-me de uma sensação de ter
feito algo errado e ter sido dedurado. O ladrão conseguiu inverter toda a minha
sensação com um dedo apontado para mim no céu. Estava feito, e eu ali voando de
volta entre a copa das árvores, fugindo sabe-se lá do quê.
Claro que significa muita coisa,
mas durante o sonho não é momento de reflexões de ajuste de personalidade e de
medos e ansiedade. Simplesmente corri voando de volta para a festa. Mas não
tinha ninguém lá. Parece que todos estavam empenhados na busca do ladrão. E eu
não tinha o que fazer a não ser fechar uma janela que estava lá, aberta para
mim. Talvez quisesse só fechar porque era tarde, mas agora escrevendo, parece
mais ainda que eu queria mesmo era me fechar do mundo.
E eu fechando as janelas, ou
aliás – tentando. Quando de repente, não mais que de repente surge uma cabra
pela janela. Uma cabra. Simples assim. Um ser caprino, que colocou a cabeça
pelo lado de fora e ficou me olhando. Fez um béééééé. E eu pensei: bom, vou ter
que fechar a janela mesmo assim, querida. E quando eu tentava fechar, ela
enfiava a cabeça pelo vão. Era uma janela verde, dessas que abrem no meio e
fecham com uma taramela. E a cabra lá. Quando criei coragem para empurrar com a
mão a cabeça dela, surgiu outra. Elas se revezavam para me atrapalhar na árdua
missão de fechar o cômodo... Acordei com o telefone tocando.
Os sonhos sempre trazem sentidos
ocultos que nos revelam muitas coisas. A cabra eu vi um gif no dia anterior, um
que retratava duas cabras inconvenientes. Eu querendo me fechar em mim, e as
cabras querendo quebrar meus planos ao meio. Eram duas que se revezavam. Como
no gif, duas também. E eu querendo fugir... que parte do meu dia me anda
fazendo querer fugir? Acho que preciso pensar...
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