Marley e Ele
Para Evely
Libanori
O homem, feliz, ou
bêbado, ou drogado, ou doente mental. Mal vestido, falando bem mole. Mochila
nas costas, calça jeans surrada e camiseta de propaganda de algo, já um tanto
desbotada. Ele fala com um Cão. E está feliz. Muito. O diferente ainda é como
ele fala com o Cão. Ele não se posiciona como dono do Cão, mas como Amigo. Ele
dizia – num chora, heim, Amigo! Que que foi?! Num quero ninguém choran perdimim,
heim? Pó tratá di ficá feliz!
O Cachorro, mais
surrado que o homem, declaradamente de rua, não parecia querer ser pertencido.
Apenas era Amigo do homem. Ele, de pelagem negra, suja de areia de uma
minúscula faixa de menos de 5 metros de praia na Avenida Beira-Mar. Ele parecia
contar algo ao seu Amigo de outra espécie, o humano. Parecia contar um algo bem
interessante. Coisas que fazemos entre Amigos. E seu Amigo humano fazia vistas
de que entendia tudo e também replicava à altura dos rosnados explicativos. A
cena era linda de se olhar. O mar no fundo brilhava dando a sensação que só era
aquilo mesmo, na vastidão do oceano, a se observar. Era, ali, a única coisa que
importava, para os dois. Um ao outro.
Que que foi? Tá cum
fome? - O bípede, que só tinha sua
condição humana a oferecer, assim o fez com gosto e afinco. Virou ele todo a
boca do Cachorro Amigo. Assim, começou a abordar os transeuntes – Dá uma moeda,
pu favô, seu sinhô, minha senhora, minina, moço. Assim, tendo juntado um tanto, meteu a mão no
bolso de sua calça e de lá tirou como um tesouro uns dinheiros que nos seus
olhos brilhavam como um pote de ouro no fim do arco-íris. Seu sorriso me
contava que ele tinha o que faltava do dinheiro. E assim, ele e seu Amigo Cão
partiram.
Algum tempo
depois, voltam os Amigos, uma mais faceiro que o outro. O bípede, de tão
contente e feliz que estava até me contagiou, e teria contagiado mais pessoas
se as poucas que estavam ao redor prestassem atenção além de si mesmas, na sala
de jantar, preocupadas em nascer e morrer. O Cão, então, esboçava contentamento
que se derramava por onde passava. As pessoas notavam os dois, mas olhavam
diretamente só para o Cão. O bípede não lhes merecia a atenção, pensavam, acho.
E ele lá, com a boca aberta num sorriso largo, com a linguona para fora babando
feliz, com saltos altos e com o rabo que parecia abanar o Cachorro com muito
mais força que tinha o próprio dono!
- Ó que a gente
tem!! - disse gabando-se com uma sacola
plástica em uma das mãos. Era a compra com a vaquinha coletiva. Então, levantou
a sacola e tirou de dentro um saco de comida. Mas só para o Amigo. Um saco de
ração. Ele falava a quem tivesse ouvidos – Rai cumê, rapaizi. Rai lá e enche
esse bucho magro”. O Amigo não necessariamente magro, nem parecia esfomeado.
Parecia mais um homem independente sentado no quiosque da praia, com seu Amigo
humano, dividindo calma e educadamente uma bela porção de cores, sabores,
cheiros e tudo mais sortidos.
Tão irradiante
estavam, só faltou a música. Então, sacou o o celular do bolso da calça e logo
colocou um funk que gemia “desliza, desliza, desliza no quiabo!”. Ele não
dançava. Apenas olhava contente seu Amigo comer tranquilamente a ração. O Cão
era de rua, e era nobre. Comeu com calma, aproveitando mais a companhia do que
o prato. Eles eram Amigos. E de súbito, o homem virou-se para mim e disse:
agora é a MINHA vez. E depois sorriu novamente.
Sorriu um sorriso banguela, amarelo esculro e preto. Um sorriso barroco –
entre o sublime e o grotesco. Um sorriso sincero, de alma. Pegou no quiosque
uma cerveja que pagara com o restante do dinheiro da ração.
Ele estava feliz
de ver bem seu Amigo e o fato de viver com as sobras não lhe parecia grave.
Senti lendo nos olhos dele um “É o bastante para nós dois, pelo menos por hoje.”
Ele, o Cão. Ele, o Humano. Eles. Amigos do peito.
‘
Que lindo, Gui, que tocante, que emocionante. Você escreve e eu sou sua fã. Obrigada por presente tão maravilhoso.
ResponderExcluirhuuum.... um tanto fui inspirado pelo seu texto, comparando os sacrifícios, aproximando-os. No fim ^^ - É mais uma homenagem do que de fato uma criação minha ^^
ResponderExcluir