domingo, 1 de janeiro de 2012

A louca


Ela era louca, já estava confirmado pela medicina, pela Vox populi e pela santa igreja.  Não se enquadrava de modo algum àquela sociedade tão simples de seguir. Bastava ter o famoso bom senso. O fato é que não demonstrava compreender determinados valores e em troca organizava só na cabeça dela um espaço só seu, em que essas verdades, para ela absolutas, jamais pudessem ser tocadas. Então, ela ficava ali, alienada. Pois não conseguia ajustar-se entre os outros. Isolou-se aos poucos, na mesma medida em que era deixada de lado, ou simplesmente desacreditada, não levada a sério.
Para quem os efeitos da sociedade fossem neutros, ela seguia às vezes um pouco preocupada em não conseguir se encaixar. Parecia que tinha ciência da própria loucura. Dizia coisas que faziam muito sentido, até, quando tentamos entender como ela organiza as pessoas em sua cabeça. Mas era difícil, pois não se pode cruzar determinadas linhas morais, como a conduta sexual, ou mesmo a freqüência na igreja ou o lugar em que lá ocupava. Pensava mesmo que estava louca, pois nunca ninguém concordava com suas ideias. Seus esboços.
E de uns tempos para cá, a dita louca varrida tinha posto a escrever. Escreveu sua primeira história. Leu e releu várias vezes, mudou trechos e os rumos da história. Fez vários ajustes até dar-se por satisfeita com sua primeira criação. Conheceu o êxtase e viu que era bom. Sentiu-se finalmente dentro de um mundo. Escreveu outras dez histórias no mesmo fôlego e cada uma delas era um êxtase assim ou assado, dependendo de seu desempenho na escrita. Amou-se pela primeira vez. Viu-se contida o bastante para viver em sociedade, viu-se livre de sentir-se louca, ainda que continuasse sendo, pois não sentia esperanças para gastar com determinados sonhos dourados. Sonhava que voava, e sabia sonhar.Dizia que sabia que estava sonhando e colocava-se a narrar uma de suas histórias malucas outra vez.
E então, com onze histórias escritas e devidamente ajustadas, decidiu que era o momento certo para compartilhar. Mostrou ao papai e à mamãe, mas eles não deram muita importância. Leram uma ou outra história e não viram nada de mais. Ainda comentaram entre si que a menina estava terminando de enlouquecer, porque suas histórias mirabolantes não contavam nada de mais da vida de uma boa moça comportada. Então, não relevaram suas histórias mais verídicas. Era assim, tão simplesmente, deixaram para lá.
A louca da filha não teria peito para perguntar de volta o que tinham achado de sua coletânea dourada. Eles não diziam nada, nunca. Nem que sim nem que não. Apenas, não tocavam no assunto.  E a pobre coitada se tornava cada vez mais obcecada pela dureza que sentia para lidar com esse simples fato. Ela pirava. Um dia, olhou na fechadura do quarto e viu a mãe, andando, nua, da cama para o banheiro, dentro do quarto, como que saída do banho e maquiando-se hora no espelho do banheiro, ora no do toucador. Mas o mais engraçado, contava a menina, é que a mãe começava a desaparecer no reflexo conforme se vestia. Colocou a saia e no mesmo instante suas pernas sumiram. Terminou de vestir-se e ficou apenas no espelho as mãos e a cabeça, colados num corpo que não existia mais. A mãe, enquanto pintava suas faces, sumia à medida em que pincelava em si cores exóticas e neutras. A mãe, por fim, terminou sem que existisse no próprio espelho. E o mais assombroso é que ela nem tinha notado a ausência de seu reflexo, mas não parava de se olhar. E se olhava...
A loucura. Era ela que ligava mãe e filha. E no domingo de manhã, iam as duas para igreja. Braços dados, dízimo, belos terços.

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