quarta-feira, 16 de março de 2011

A deus, adeus, a gosto de deus, agosto meu.


A noite chegara com ordens expressas de mandarme os olhos repousarem. Quem diria que a posição das pálpebras pudesse controlar o tempo com tanta precisão. Se eles se cerram, ao abrir já seria o dia seguinte, se não fosse a interferência provocada pela sondas de insônia que vinham na minha mente e pareciam que jogavam baralho. Insônias improdutivas. Deus deveria proibilas de se manifestarem. Mas talvez deus não tenha nada a ver com isso. Saramago sabe o que diz. É Sara e é Mago. Não é bicho algum. 

Ansiedade tomava seu chá na cozinha. Ela apreciava os sabores fortes. Detestava chás de maçãs e outras coisas que demandam concentração para a degustação. Com ela, tudo deveria ser prático. Gole, gole gole glup!. Tomara tudo e estava pronta. Não sei se ela sabia que sua prontidão me despreparava. Talvez fosse isso que quisesse. Talvez quisesse isso achando que pudesse me ajudar. Talvez ela seja má e queira mesmo prejudicar. Talvez eu nunca descubra. Só sei que naquela noite eu decidi tentar fazer alguma coisa. Fiz uma oração. Ao deus cristão mesmo. Dizem que ele está em todas as partes. Assim aprendi quando cristãozinho: “deus é onipresente”. Como alguém está em mais de um lugar ao mesmo tempo? Isso é humanamente impossível, eu pensava. Mas deus não é humano. Ele é uma criação humana, e assim como outras, saiu do controle e dominou quase toda a terra. As Flores me ensinaram que isso era uma grande jogada da humanidade: vida após a morte. Elas poriam deus no chinelo, caso ele existisse. Mas no momento da oração, eu tive uma recaída, e confesso que até cheguei a ter esperanças. Gritei, meio sem jeito, um alô aos céus. Mensagem fática em oração. A gente aprende que a oração é um instrumento tão poderoso que não precisa testar canal algum. Vai dar certo. Claro. Assim como deu certo a minha oração, imagino.

O caso é que rezei: preciso escrever, senhor. Preciso terminar a metade do segundo terço e dar cabo do terceiro terço também, rezei dividindo mentalmente o meu trabalho em três partes iguais e considerando que já terminara o primeiro terço e já fizera metade do terço seguinte. Quanta racionalidade, pensei em reservado comigo mesmo. Isso é uma oração! Eu estou pedindo um milagre! O que racionalidade tem a ver com isso? O propósito era justamente não utilizar a racionalidade e resolver milagrosamente meu problema. Eu, desperso, quando tentei retomar a oração, Ansiedade entrou no quarto e sentou-se na minha cama. Ao meu lado. Ela segurou a minha mão, e num gesto de desespero eu prossegui: Mande-me sua luz!!
Na manhã seguinte, procurei por Ansiedade. Ela não estava em casa. A luz negra da noite deve tê-la consumido. Muito rápido, aliás, porque só havia fechado o olho e pela manhã o abrira. E tudo era outro! Outro dia!! A campainha do apartamento vizinho tocava. Era um apartamento vazio. Ninguém iria atender. E então foi que o barulho começou. Uma furadeira feria a parede da sala vizinha e minha casa toda era avisada. Ali estava Ansiedade, na porta, me esperando abri-la para entrar. Ela estava segurando na mão do pedreiro. Achei a cena estranha, mas ignorei. Tinha propósitos a seguir naquele instante. Perguntei ao senhor: preciso escrever, senhor. Quanto tempo vai levar essa reforma? E quando ele abriu a boca, nenhum som saiu. Era como se ele respondesse com seu hálito quente, temperado com o sabor do café e do cigarro, com os últimos resquícios das pingas e cervejas que tomara na noite anterior. E como um balé de terror, Ansiedade largou a mão do velho e na leveza da bailarina, ela veio num longo e frenético, ainda silencioso e perfeito courru. Um braço alçava ao ar, e o outrocomo se tivesse consigo uma bola de parque. A coluna, parecia que tinha um fio que ligava sua cabeça ao teto e seus ombros fossem chupados pelo chão. Alongada e longilínea, e ela foi com a cabeça voltada para a mão de cima de seu port de bras.

Ela entrou e fechou a porta. Era sorte que o céu não estava presente no momento. Eu teria olhado para cima e soltado um pelo palavrão. Ou era verdade, que deus não existia, ou pior: ele existe e não está nem aí para nada. A parte dele, Ele já fez. Glória a vós, senhor.
FOTO: Irina Dvorovenko – American Ballet Theater – Foto Sara Krulwich









Nenhum comentário:

Postar um comentário